Solidão, abandono e a estrada para a descoberta (nos videojogos)

Por: Francisco Isaac

AVISO: Este artigo tem SPOILERS para Journey, Abzû e Stray.

A palavra solidão é sinónimo de um isolacionismo não conscientemente provocado e que propícia a qualquer um cair num marasmo de tristeza, amargura, desespero e, por vezes, de questionamento do seu espaço no Mundo. Não há forma de evitar o extremo peso negativo que acarreta e basta viajarmos a qualquer área da cultura humana para percebermos o seu impacto em cada um de nós. No livro Jane Eyre, da escritora inglesa Charlotte Brontë, entre as várias passagens repletas de imensa emoção e de debate sobre o existencialismo, há uma frase que explica com exactidão o sentimento anti-solidão,

“Não há melhor forma de felicidade do que aquela em que nos sentirmos amados por criaturas como nós, e sentir que a nossa presença traz conforto.”.

Charlotte Brontë

A solidão e abandono são questões que habitam em todas as formas e feitios, desde filmes, música, artes plásticas, literatura, e, com naturalidade, chegou ao mundo dos videojogos, sendo um daqueles temas que desafia qualquer um a enfrentar estes dois medos com um comando nas mãos e uma personagem que está ininterruptamente ligada a nós através desse elo físico.

Não tendo espaço, e não querendo, também, abusar do espírito de bonança do leitor, vou fazer uma caminhada pela solidão e abandono em três jogos que nos agarram e procuram dialogar com ambos os conceitos, mantendo sempre a esperança que algo mude durante a viagem. Curiosamente, Journey, Abzû e Stray são jogos de produções independentes, o que merece ainda um carinho maior por falarmos em temas que podem, à partida, afastar uma quantidade assinalável de jogadores.

Journey e Abzû são dois jogos que partilham várias similitudes, em que temos acesso a um protagonista que não expressa nenhuma palavra audível, vagueando por um mundo terrivelmente esbelto, recheado de uma palete de cores que faria Salvador Dalí sentir inveja por não ter usado tanta conjugação cromática nas suas criações. Nada nos é dito antes do início e só quando começamos a encaminhar pelos caminhos abertos ou sinuosos é que nos vai sendo revelado algumas coisas sobre nós, o nosso mundo e o nosso destino.

Durante toda a viagem, a solidão é um dos nossos maiores companheiros, como se tivesse sentada no banco de trás para passageiros, a marcar presença em momentos-chave e a resgatar a nossa personagem e, por extensão, as nossas emoções em situações de esperança e bonança, retornando-nos à sua companhia. São jogos em que não soltamos uma única palavra quando ligamos a consola, deixando que o nosso consciente e subconsciente se deixem agarrar pela frieza eterna desta solidão.

Em Journey, há um momento em que o contraste visual e musical consegue fazer o retrato perfeito do que é a solidão para qualquer um, especialmente para aqueles que não desejam se sentir abandonados e sozinhos. Na secção 4, apelidada The Descent, somos abraçados pelo calor das dunas e das extensas areias douradas, com uma melodia tão intrinsecamente profunda e bela que nos faz esquecer da solidão por um momento. O deslizar suave por entre este deserto, que consumiu cada pedaço de civilização como se fosse eternamente seu, e o dançar por entre outros seres que não são como nós, comporta aquela sensação de estarmos em grupo e em grande felicidade, esquecendo-nos dos problemas e tristezas do dia-a-dia. Porém, num instante este momento de êxtase rapidamente se finda e, como no salto da nossa personagem, a descida até ao silêncio gritante e perturbador é cravejada por uma queda em falso. Mentiria se dissesse que a minha reação foi ficar parado a olhar especado para o ecrã, a tentar processar esta sequência de acontecimentos fluída e a reflectir sobre a amargura mas beleza da existência.

Minuto de 06:30 a 07:34

Na verdade, o meu instinto foi logo mexer-me e ir em busca de passagens para sair do buraco frio para onde tinha caído, tentando, de alguma forma, retornar rapidamente à companhia daquele cenário quente e dos outros seres voadores que pareciam ter engraçado com o meu surf por entre as dunas. Para quem tenta evitar a solidão e o abandono, a procura imediata por encontrar alguém que comunique connosco é uma reacção humana. É como sentir uma pontada de felicidade quando o sol nos aquece no meio do Inverno, mesmo que digamos de seguida que “não é altura para tanto calor.”.

Journey consegue fazer-nos sentir aquela estúpida montanha-russa de emoções que tanto oferece momentos de tremenda alegria ou a prisão da infelicidade de estarmos alheios de outros que podem comunicar connosco. A receita em Abzû é extremamente similar, sofrendo algumas diferenças. Com o vasto oceano como pano-de-fundo, este jogo faz-nos mergulhar e passear por entre folhagens, seres e mistérios marinhos que envolvem o jogador desde a primeira curva. A maioria das pessoas gosta de nadar e mergulhar para o fundo, disso, não há dúvidas. Há quem diga que a nossa necessidade em nadar está em contacto com a origem da vida, uma vez que os profundos mares e oceanos foram o receptáculo do qual toda a existência brotou.

Em Abzû, temos a possibilidade de atirar-nos para as várias tonalidades de azuis e verdes que compõem este jogo, encarando tubarões, baleias, raias e peixes de várias cores e espécie, podendo nadar com estes e entrar numa comunhão que nos faz esquecer de um verossímil pormenor: de que somos o único ser com duas pernas, dois braços e uma cabeça no meio daquela vastidão sem fim. O nosso “boneco” não tem fala, mas pode comunicar através de eco e a composição musical vai ajudando a dispersar o factor medo que, legitimamente, nos invade a cada novo mergulho na procura de descobrirmos a nossa rota e origem.

Em certas situações, e após passarmos aquelas fases mais conturbadas ou energicamente pautadas por uma música magnificamente pensada, seguem-se longas golfadas de silêncio, com a tal solidão a levantar o braço e a tocar-nos no ombro, relembrando que ainda está ali. Esta sensação sobe de tom quando – atenção aos SPOILERS, passem para o parágrafo seguinte, caso queiram jogar Abzû – descobrimos trechos daquilo que poderá ter sido a nossa civilização, apercebendo-nos que nós não… somos humanos. Afinal estamos verdadeiramente sozinhos ali, no mundo das águas sem fim.

Há um twist final que acaba por nos devolver ao patamar da felicidade, mas a marca da solidão não deixa de ter fincado a sua dentada, mesmo que nos tenhamos escapado do abandono, muito pela nossa capacidade de ligarmos e simpatizarmos com todos os seres marinhos e habitantes do vasto oceano.

E Stray? Bem, Stray consegue algemar-nos aos princípios e medos da solidão através de uma fórmula inicial fácil e inteligente: mostra-nos a nossa família de felinos de pequeno porte; permite-nos viajar com estes durante alguns minutos, brincando e atirando uns miados; e, de repente, surge o momento em que tudo nos é arrancado por via de uma queda para o vazio e desconhecido. De sentir o calor familiar e das brincadeiras que são próprias entre quem se conhece, a  ouvir simplesmente o nada que não nos devolve sequer o eco da respiração, sentindo-nos perdidos no vazio. A transição emocional de Stray é uma jogada quase perfeita.

Toda a viagem por aquele bunker citadino é uma homilia ao desassossego, que procura criar, numa primeira fase, um manto de dúvidas longo e aterrador. O factor do desconhecido naquela mancha urbana, que parece ter sido abandonada por todos os seres, é a representação monstruosa da solidão, perseguindo o nosso leve e ágil protagonista por toda a parte. Mas não é só este gato sem nome que enfrenta a questão do abandono e solidão, uma vez que o co-protagonista, B-12, é a perfeita representação deste ficar “sozinho” no Mundo.

À medida que este ser mecanizado vai recordando o seu passado, apercebemo-nos que a Humanidade foi vítima de si mesmo, fechando-se em cidades e criando constantes barreiras até suprimir a sua existência. Numa das memórias de B-12, este recorda-se do frenesim e alegria em sair à noite, de vibrar ao som da música da época, bebendo este néctar agridoce que pulsa sensações contrárias, entre a felicidade do recordar e a amargura por não poder reviver esses momentos novamente.

Em Stray, os seres robotizados, que ficaram para trás, ganharam consciência e tomaram para si os comportamentos e elementos estéticos dos seus criadores, sentido também eles o peso de ficarem sozinhos ou abandonados. O melhor exemplo disso é a relação de pai e filho (e não pus com aspas, porque para mim existe ali efectivamente uma ligação parental verdadeira), entre Doc e Seamus, com ambos a envolverem-se num abraço emocional aquando da sua reunião, mostrando que também ali, no meio daquela cidade perdida no tempo, as máquinas sentem emoções e querem fugir à solidão.

Todo o cenário é polvilhado por elementos imagéticos que nos atiram para um local frio, humanamente desprovido de vida e que tenta impor-nos a sensação de “procurar rapidamente o camimho de retorno a casa”. Novamente, e como em Abzû, alerto para SPOILERS que podem tirar peso ao desenlace final.

No último momento, e quando estamos a auxiliar o B-12 a abrir o tecto que separa a cidade inteira do exterior, somos deparados com um momento que nos atira, novamente, para o abraço pesado e asfixiante da solidão: o nosso co-protagonista, num acto de altruísmo total, sacrifica-se para abrir os portões e permitir que o seu amigo felino possa ir em busca da sua família. Para quem passou 8 horas consecutivas a navegar por cada canto e cantinho daquele pedaço de cimento, ferro e aço – a descobrir pormenores da cultura passada e a  perceber como os autómatos se adaptaram a esta herança recebida –, o adeus final de B-12 é o retornar à solidão total.

Para aguçar ainda mais o sofrimento e dar com mais força nos sinos do ficar sozinho, o jogo permite ao nosso protagonista felin enrolar-se junto do seu falecido companheiro e ficar ali, num silêncio perpétuo. O ter que levantar, olhar por uma última vez para o corpo robotizado de B-12 e sair a correr em direcção aos portões, oferece pouco consolo, dando lugar à dúvida se o gato que conduzimos vai encontrar a sua família.

A solidão em qualquer um destes três jogos força-nos a pensar no nosso lugar no mundo, se seríamos capazes de enfrentar este estado de espírito sem cairmos num vórtice de tristeza, amargura e ira, e conseguíamos seguir em frente e procurar formas de nos conectarmos a outros. Não é para tomar isto como uma apologia anti-ficar sozinho e nem um apelo para irem à procura de construir elos emocionais com outros. Nem todos temos os mesmos comportamentos sociais, ninguém deve ser obrigado a viver em larga comunidade e querer fazer constantes amizades ou contactos. Porém, a essência humana, e da larga maioria dos seres, é de existir alguma necessidade em estarmos em grupo, a procurar conforto nos actos e nas palavras de quem nos pode compreender – ouvir o nosso nome a ser entoado.

Em Journey, Abzû e Stray, nós sentimos na pele o que é ficar só a atravessar caminhos e passagens sem sentirmos o apoio de quem mais gostamos, e de termos que manter os piores pensamentos a um braço de distância. São três jogos onde o acto de carregar num botão não é uma simples tarefa automatizada, é ter de lidar com uma sensação de aperto total num ambiente virtual que nos força a procurar o nosso caminho para a felicidade. Porque no fundo, qualquer um destes jogos ensina-nos algo importante… ter esperança e acreditarmos no poder que cada um tem dentro de si para superar os piores sentimentos e medos!

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