Catarse e NieR: Automata — Glória à Humanidade

“Whether or not you enjoy something simply depends on your own heart.”

Machine Receptionist, Amusement Park

Por: Ulisses Domingues

Faz em Março de 2022 cinco anos que NieR:Automata regozijou jogadores por este mundo fora com uma história emocionalmente inteligente, narrativa fora-da-caixa e jogabilidade produzida pela talentosa PlatinumGames em conjunto com Yoko Taro e Square Enix. Não fossem as excelentes vendas reportadas (6 milhões até 22 Junho 2021) NieR:Automata conduziria o seu estrelato não só graças a um generoso agregado no Metacritic entre 84 e 91, mas também por uma legião de fãs cujo amor e paixão impulsionaram o lançamento de NieR:Replicant, remasterização recente de sucesso.

Curiosamente, em título pessoal, NieR:Automata foi o primeiro elemento-chave à qual fiquei conotado na génese da minha participação na rede social Twitter. Antes de um Monster Hunter havia esta diminuta obsessão, promulgada ad eternum por todos os canais; forma encontrada para desmarcar a minha persona da multidão. Enganas-te, no entanto, se presumires tudo como mera casualidade ou, pior, stunt publicitário. Longe disso. NieR:Automata continuará a ser o meu Número Um entre os mais de 550 videojogos terminados até à data. Porém, por mais que deseje, tornou-se difícil transparecer o porquê inerente a essa questão.

Não é fácil, seja por palavras ou imagens, correlacionar os meus sentimentos com uma razão arbitrária do que torna NieR:Automata tão especial. Tantas vezes apresentei a obra de Yoko Taro como sendo a mais bela nesta meio, seja pelo combate impressionante ou história melodramática, recebendo pouco mais do que um “é giro”. Mas se vivenciar todos os elementos na sua plenitude não convence então recorrerei ao meio pelo qual sou mais conhecido: análise escrita. Não será uma ecdótica do videojogo em si, mas sim uma crítica extensa e aprofundada dos vários temas filosóficos desta distopia tão intensamente amada. Isto é “Catarse e NieR:Automata: Glória à Humanidade”.

NOTA: Antes de continuar aviso que esta peça conterá imensos spoilers sobre NieR:Automata. Refletirei em personagens-chave para o enredo, na sua história pessoal e o lugar do verdadeiro clímax narrativo no grande esquema das coisas. Se permitem sugiro fortemente que leiam o texto ao ouvir a banda sonora do videojogo em questão. 

A grande questão que NieR:Automata aparenta colocar prende-se com uma pergunta intemporal, dúvida existencial questionada diversas vezes no género da ficção-científica: “E se robôs fossem como humanos?”. Filmes como Matrix, I, Robot e tantos outros enraízam-se no ramo filosófico da epistemologia, respondendo sempre da melhor forma que os seus guionistas e diretores sabem. Porém, esse é o domínio do cinema, meio artístico onde o espectador será sempre um agente exterior e passivo. Neste ambiente o jogador (mistura inteligente entre espectador e ouvinte interventivo) interage com a ação em curso, proporcionando uma experiência única, colocando um leque de perguntas e respostas diferentes daquelas encontradas noutro meio.

Torna-se curioso este discurso quando refletimos sob a superfície de NieR:Automata, videojogo de ação hiper-violenta, estilizada e repleta de uns quantos sensuais andróides ninja, amotinando todos a pôr em prática a regra número trinta e quatro da internet. Quase que empurra qualquer argumento filosófico pelo precipício, não fossem estas parataxes tresloucadas algo comum da cultura pop japonesa. NieR:Automata, no entanto, não tem interesse algum em perpetuar a questão supracitada, preferindo mesclar conceitos filosóficos introduzidos ao longo da história da humanidade para, posteriormente, subverter a nossa expectativa e desconstruí-los na hora, aproveitando-se do seu género de ficção-científica para escavar mais umas quantas camadas abaixo do entendimento humano.

De uma forma geral a premissa de NieR:Automata apresenta-se séculos depois de NieR:Replicant onde máquinas alienígenas invadiram o planeta Terra. A humanidade viu-se forçada a procurar refúgio na Lua, acontecimento este que presenteia um cenário pós-apocalíptico e um mundo povoado por seres artificiais. Para retomar o planeta é criado o programa YoRHa, exército formado por andróides de combate e agentes da humanidade para perpetuar uma guerra (que já vai na 14ª) contra estes invasores. Criados sob um único propósito e unidos por um patriotismo desmedido, estes seres artificiais manifestam-se sempre com um sonoro lema: Glória à Humanidade. Durante anos este o conflito perpetua-se, originando impasses entre ambas as fações. Curiosamente, sem grande explicação, tanto os humanos como os criadores alienígenas das máquinas estão constantemente ausentes destes conflitos, resultando numa guerra por procuração.

Everything that lives is designed to end. We are perpetually trapped in a never-ending spiral of life and death. Is this a curse or some kind of punishment? I often think about the god who blessed us with this cryptic puzzle and wonder if we’ll ever have the chance to kill him.

2B no início de NieR:Automata

É depois desta citação muito importante e prólogo explosivo que os protagonistas 2B e 9S iniciam as suas aventuras. Os primeiros instantes no planeta Terra revelam que, apesar da introdução fervorosa, a aclamada décima quarta guerra parece estar um pouco caducada. Fora umas sequências de ação e outras tantas caricatas em videojogos, NieR:Automata apresenta andróides que, dentro de uma certa limitação, aprendem a lidar com as suas emoções, cozinhar ou até consumirem estimulantes (paralelo ao consumo de drogas). Por sua vez as máquinas adquirem uma espécie de senciência, copiando comportamento humano numa desesperada tentativa de ascender para além da sua existência. A jogabilidade é outro bastião com as suas diversas alterações entre pontos de vista e mecânicas: combate em terceira pessoa, níveis de plataformas em duas dimensões, shoot’ em ups vertical e horizontal e até twin-stick shooter. Este constante cabo de guerra sugere que existirá sempre uma nova maneira de abordar o que já é conhecido.

We’ve destroyed machines beyond counting. Perhaps someone sees that as a sin

B, após concluir a demanda secundária Machine Examination 2

Apesar do enredo anime e melodramático, NieR:Automata esforça-se por subverter expectativas não só forçando o jogador a compreender todos os elementos por outros ângulos, mas também por oferecer, constantemente, novas interpretações e contexto desta décima quarta guerra. Ele apodera-se dos nomes de vários filósofos, seja através de bosses, NPCs ou demandas secundárias e, com mestria, subverte e apresenta-os ao jogador como um bolo que pede uma digestão calma para realmente entender a mensagem por detrás. Estes filósofos e os seus conceitos serão de seguida abordados um a um, desconstruídos por ordem de chegada para realmente demonstrar que este videojogo é muito mais do que espadas, drama e o traseiro da 2B. Entendedores entenderão.

Um dos primeiros conceitos filosóficos encontrado em NieR:Automata está na primeira demanda secundária The Supply Trader’s Request. É uma simples, mas multifacetada fetch quest que retrata a aflição de um comerciante em reunir peças sobressalentes para compor e reparar o seu equipamento, incapaz de o fazer por uma perna partida. Terminada a missão e antes de aceitar a recompensa os protagonistas questionam o lojista porque não são utilizadas as novas peças para substituir a perna. Invés de terminar a conversa com algo irónico ou absurdo, o comerciante coloca a sua própria questão: ao longo dos anos ele substituiu todas as peças no seu corpo exceto a sua perna. Na eventualidade de o fazer, será que continua a ser o mesmo indivíduo ou alguém completamente diferente? Com esta dúvida em punho a personagem secundária opta por continuar na ambiguidade com receio da resposta, preferindo não substituir e continuar coxo; imóvel no seu posto. Fãs mais desatentos colocarão este diálogo numa lista interminável de “conversas num videojogo que não levam a lado nenhum”, mas outros entenderão que é uma clara referência ao paradoxo O Navio de Teseu pelo filósofo grego Plutarco.

Esta charada filosófica faz referência ao navio onde Teseu e a juventude de Atenas viajavam ao voltar de Creta, depois de um encontro com Minotauro, figura popular da mitologia grega. É contado que a embarcação foi preservada pelo povo ateniense durante anos, substituindo as tábuas apodrecidas por outras novas. Isto gerou um tema de discussão entre os vários estudiosos da época, incluindo Plutarco com uns argumentando que o navio continua igual, outros contestando que a substituição invalida a originalidade. É igualmente possível aplicar este enigma à biologia do corpo humano, onde maioria das células renovam-se entre 7 a 10 anos. NieR:Automata utiliza este conceito no início da aventura para estabelecer as subsequentes dúvidas existenciais que assombram a restante trama do enredo.

Trilhando a história principal o par de androides 2B e 9S defronta a robô Simone no parque de diversões, boss inimigo e homólogo da filósofa feminista francesa Simone de Beauvoir. Famosa pela célebre expressão Não nascemos mulher, tormano-nos numa (We aren’t born woman, we become one) Beauvoir publicou O Segundo Sexo em 1949, uma das primeiras e mais importantes obras feministas nesse século, responsável também por iniciar a discussão sobre a distinção entre sexo e género. De acordo com a autora a noção que o género feminino difere do masculino não se prende por algo biológico ou outra característica inerente, mas sim por uma construção social teatral. Mais afirma que a própria feminilidade é determinada pelo poder vigorante (homens) da sociedade, corroborando isto com o conceito supracitado, explicando que esta é apenas um papel a desempenhar na sociedade, assim como a masculinidade desempenha o seu; dotada de uma posição privilegiada por defeito.

Através das várias playthroughs que NieR:Automata fornece, Simone vê a sua história pessoal desvendada: um pequeno robô que, desesperado pelo afeto de outro com nome Jean-Paul, canibaliza outras máquinas para melhorar a sua aparência. Um amor não retribuído entre os dois causa o descontrolo iminente enfrentado pelas personagens principais, não deixando de ser irónico, tendo em consideração que os homólogos na vida real detinham uma relação aberta e poliamorosa, embora longe das rosas e arco-íris pintados. Não sendo por mero acaso que a derradeira batalha decorre numa sala de espetáculo, Simone tenta dar início à sua atuação principal, desempenhado o seu papel como este é retratado em O Segundo Sexo, procurando o afeto e validação de uma pessoa ou até do jogador durante a batalha. A infeliz e macabra reviravolta é que Jean-Paul, em NieR:Automata, não está sequer ciente da sua existência, por muito que a Simone execute o papel predeterminado do seu género; Jean-Paul não olha para ela (nem o jogador consegue em certos segmentos da batalha) apesar do seu último nome Beauvoir ser, em francês, bela (beau) e ver (voir).

Well enough! Let us begin by discussing the concept of existentialism.” 

Machine with Hat/Jean-Paul na aldeia de Pascal no primeiro encontro

Terminado o capítulo trágico de Simone fará todo o sentido abordar, consequentemente, o filósofo francês Jean-Paul Sartre. Em NieR:Automata este é caracterizado por um robô de aspeto adulto com uma cartola na cabeça, porém na vida real Jean-Paul foi uma importante chave para a filosofia ocidental com o seu texto O Ser e o Nada, publicado em 1943. Lá Sartre pega no conceito de existencialismo, uma “doutrina filosófica segundo a qual o homem, que primeiramente teve uma existência quase metafísica, se criou e se escolheu a si próprio atuando” (dicionario.priberam.org; 2022). Segundo Sartre a existência precede a essência, ou seja: o livre-arbítrio e experiência de vida define o mundo de cada indivíduo, dado que cada existência é única assim como a essência. Por outras palavras, fora compreender que o tempo é a única constante imutável da vida, a única certeza para cada um de nós é a nossa existência e consciência. Por sua vez a consciência individual é prova definitiva que o livre-arbítrio é verdadeiro.

Não obstante os textos e estudos interessantes do seu equivalente realístico, Jean-Paul como robô em NieR:Automata é uma máquina reflexiva e egocêntrica, dialogando com os protagonistas quase em monólogo. Tendo em consideração o supracitado sobre existencialismo é peculiar encontrar uma sátira ao filósofo francês nesta personagem. A demanda “Jean-Paul’s Melancholy” faz de 2B e 9S pombos-correio para os fãs de Sartre, existências que este filósofo nem reconhece do tão virado sobre si mesmo que está. Para este indivíduo nada no mundo exterior interessa, tanto que ao completar a demanda ele simplesmente desaparece em busca de respostas às suas questões, quase que estabelecendo um paralelismo entre existencialismo e a vida pessoal do verdadeiro Jean-Paul.

Those who reside here desire nothing more than to live a peaceful existence.

Pascal.

Antes de abandonar o local que 2B e 9S visitam é de extrema importância discursar sobre uma das personagens mais importantes e trágicas para a história de NieR:Automata. Identificando-se como um pacifista e líder de uma aldeia habitada por outras máquinas, sendo também uma das primeiras a rejeitar a décima quarta guerra, Pascal é das personagens mais inteligentes encontradas neste mundo. O seu homólogo é um filosófo e matemático francês de nome Blaise Pascal, famoso pelos seus textos em geometria e probabilidade no século XVII. Contudo, é na sua obra Pensamentos que o estudioso associa as suas áreas de conhecimento com religião e cristianismo. 

Nesta escritura nasce a Aposta de Pascal, uma proposta argumentativa de filosofia apologética que visa justificar a crença em Deus. Se é impossível comprovar ou refutar a existência do Criador então questiona-se a possibilidade de acreditar ou não num ser superior. Segundo a probabilidade apresentada por Pascal crer na existência de Deus é o caminho correto, pois, caso estejamos errados, nada acontece após a nossa morte. Na eventualidade de estarmos corretos recebemos a eternidade no céu com a descrença a ser recompensada com sofrimento eterno no inferno. O cerne da questão revolve todo à volta do medo de morrer e enfrentar o inferno. É devido a esta reação que Pascal sugere viver uma vida devota e virtuosa.

Em NieR:Automata Pascal, conforme referido anteriormente, lidera um grupo de máquinas pacifistas, dedicados apenas à promulgação da paz. Mais tarde na história a aldeia é atacada por outras máquinas e as crianças (robô) da povoação são refugiadas numa fábrica vizinha. Esta não tarda a ser subsequentemente atacada também, causando a primeira rutura na personalidade de Pascal, com este a jurar morte e destruição sob as hostilidades iminentes. A segunda surge imediatamente a seguir, após uma defesa vitoriosa da fábrica, testemunhando uma cena horrorosa: todas as crianças cometeram suicídio. Pascal sofre tremendamente com este infortúnio, colapsando em espírito após compreender que a culpa é sua por desígnio.

A narrativa da aldeia dita que Pascal ensinou e educou as crianças em vários aspetos: individualidade, pensamento, humanidade, sentimento e, para melhor ou pior, medo. Ao ensinar este conceito, Pascal acreditou piamente que iria providenciar segurança e forma de evitar perigo. Foi devido à perseguição incessante deste pacifista por conhecimento e individualidade que o colocou como causador indireto desta situação. De coração partido e sem forma de viver com a consequência das suas ações é solicitado à personagem principal uma de duas coisas: eliminar-lhe a memória ou destruí-lo. Caso seja escolhida a alternativa mais “humana” Pascal volta para a aldeia como um simples vendedor. Refletir nesta opção descobre-se a ironia da escolha, pois, em ignorância, Pascal vende as peças restantes dos seus congéneres, incluindo das crianças. Tal qual como o seu homólogo na vida real, Pascal acreditou ser necessário um medo sem explicação de algo que não tem controlo para segurança própria. Mais irónico ainda? Pensamentos é o livro que Pascal recebe pelo jogador como procedimento de uma demanda principal.

It seems this Nietzsche was quite the profound thinker. Or perhaps he skipped right past profound and went straight to crazy instead. Ah, well. Enough of that. I’d best go see the world for myself instead of burying my head in books.

Pascal

Antes de tal nefasto acontecimento 2B escolta Pascal, sob condições de uma demanda, ao encontro do robô Kierkergaard, uma figura papal que lidera um grupo religioso escondido numa fábrica. Teólogo e filósofo dinamarquês, Søren Kierkegaard é considerado um dos pioneiros da filosofia existencialista, como grande parte dos referidos aqui são. Para Kierkegaard a individualidade humana, graças à capacidade de questionar a moralidade entre o correto e errado, em conjunto com a habilidade de contemplar e praticar razão fazem deste conceito uma verdade absoluta. Relevante para NieR:Automata, no entanto, são as obras sobre religião cristã, cuja suma dos argumentos culminam no pensamento que a existência de Deus é uma verdade subjetiva, impossível de comprovar e refutar. Isto revela ser mais pertinente ainda dado que a crença em Deus, como a conhecemos, só existe pela escolha racional e autoconsciente de um indivíduo. 

Acredito que caso Kierkegaard, crítico das instituições religiosas em geral, fosse português ele escarneceria estas como igrejas de loja dos trezentos, argumentando que a religião cristã praticada fornece aos seus idólatras fiéis pouca satisfação espiritual, mas muita doutrina e regra rigorosa. Em NieR:Automata, durante a aventura, 2B e Pascal encontram a seita de robôs católicos aptamente condecorados em vestes típicas mas, pouco depois de darem caras com o líder, a cabeça deste cai e todos os outros entram num frenético e religioso cântico “His wondrous Grace has become a God!” , “His Grace is a God!” diluindo até repetirem “(…) Become As Gods!”. Não só não é explícito como realmente sucede a morte de Kierkegaard no jogo (suicídio é sugerido, no entanto, é possível contra-argumentar que foi assassinado), mas todos os outros devotos praticam suicídio ou agressão na promessa espiritual de serem como Deuses. A ironia aqui exposta é tanto crítica como expressão do cristianismo; religião converteu-se numa instituição que justifica-se com o seu fundamentalismo e conservadorismo metamorfoseando-se, eventualmente, num grupo que desconsidera ou negligência a individualidade dos seus devotos, fomentando o pensamento coletivo em primeiro lugar.

Os curiosos e intelectuais de NieR:Automata estarão cientes que saltei por cima de Friedrich Engels e Karl Marx, fundadores do muito conhecido marxismo. Não por alguma razão em especial, apesar de ambas as figuras e o que elas representam desaparecerem numa fábrica, sítio que ambos mais abominam, quanto muito serem apagados da narrativa nesse instante. Semelhante acontece, no entanto, ao próximo filósofo: após a aventura religiosa com Pascal, 2B e 9S partem rumo à floresta no objetivo de comunicar com um grupo de máquinas territoriais e hostis. Estes seres artificiais são os guardiões de Immanuel, referência a Kant, filósofo alemão e principal figura do Iluminismo.

Como escritor extraordinário em várias matérias referentes a arte, política, ciência e filosofia, Immanuel Kant foi um dos responsáveis não só pelo Iluminismo, mas também por várias obras que contribuíram para larga parte do que é agora considerado filosofia moderna. Porém, indiscutivelmente, obra mais famosa produzida pelo próprio destaca-se com o nome Crítica da Razão Pura. Aqui Kant argumenta que é graças à mente humana e subsequente intelecto que é fornecida uma estrutura e significado ao nosso dia-a-dia; raciocinar, processar informação e julgar o mundo à nossa volta é uma componente essencial da nossa experiência. Curiosamente o próprio também remata que o grande cerne da questão reside no “facto” que tudo no universo foi criado por Deus, existindo independentemente da nossa experiência fenomenológica ou, como ele refere A Coisa Em Si (The Thing In Itself). É importante compreender este conceito, pois Immanuel, em NieR:Automata, faleceu anos antes da história iniciar, contudo, antes disso, preparou um plano para assegurar a prosperidade e segurança do seu povo. Pouco depois da sua morte as máquinas colocaram as suas memórias num robô bebé, aguardando pelo seu crescimento o que, obviamente, nunca aconteceu dado que máquinas não crescem e quando Immanuel é morto por A2 os seus súbditos entram num desespero violento sem saber o que fazer. Logo A Coisa Em Si existe, mas nunca ao ponto de cumprir com o seu objetivo original.

Com larga parta dos elementos filosóficos de NieR:Automata abordados, verifica-se um tema recorrente no enredo: o existencialismo proposto por Yoko Taro. Após um avanço significativo na história é revelado que todos os androides enfrentam uma crise existencial, perpetuada pelo Projeto YoRHa: uma elite de combate criada por humanos para humanos, abandonada do seu propósito após descoberta da extinção da humanidade. Os androides mais avançados, porém, decidem fabricar uma narrativa falsa: reconquistar o planeta Terra para o glorioso regresso da humanidade. Afinal de contas, como diz a comandante “nós necessitamos de um Deus que mereça a pena lutar por”. Este tenebroso Projeto YoRHa, do qual 2B e 9S fazem parte, existe sim para fornecer propósito, reforçando a falsa narrativa após cada guerra, elevando o estatuto da raça humana a deuses. É evidente que ambos os lados da décima quarta guerra procuram o seu propósito num mundo sem um, colocando a seguinte questão: porque estão ambas as facções há procura de significado?

Este padrão dos grandes pilares da filosofia humana serem constantemente subvertidos por máquinas em NieR:Automata correlaciona-se com existência e identidade, frequentemente deparadas com uma conclusão insatisfatória. Só mais tarde no enredo é descoberto o porquê desta incessante busca por significado: seletas máquinas simulam os filósofos da vida real devido à sua programação para acompanhar evolução humana. O plano em questão, colocado em prática após morte dos seus criadores, visava recriar sociedades e comportamento humano na esperança de atingir um patamar evolutivo ainda maior. Saber isto é ainda mais cruel quando constatamos que as máquinas, independentemente do seu nível de conhecimento sobre civilização predominante na Terra, estão cientes que irão falhar assim como os humanos falharam no seu tempo.

Assim como todas as boas histórias têm um princípio, meio e fim este artigo, também, aproxima-se o seu cair do pano; em especial a minha opinião final sobre tudo o que até agora foi descrito. Com larga parte do enredo exposto ficou claro que a raça humana exaltou-se a um estatuto endeusado como instituição religiosa para máquinas e androides, subvertendo mais uma vez a expectativa do público. Ao contrário do que é subentendido em NieR:Automata, nada aqui correlaciona as histórias de ficção-científica onde consideramos a hipótese de um humanoide aprender humanidade, mas sim como ir além desse patamar; ultrapassar este inimigo que assombra o dia-a-dia no intuito de conseguir ser algo mais ainda ou, talvez, apenas livre. Enquanto o novelo do enredo desenrola percebe-se cada vez mais da existência de uma quarta pessoa e subsequente barreira: tu. o/a jogador/a. 

Fãs destas temáticas reconhecerão que histórias com traços mais filosóficos são muito próprias da cultura japonesa e do género JRPG, onde a única hipótese de um final feliz envolve quebrar um ciclo que atormentam as personagens principais. Próprio de NieR:Automata são os vários finais obtidos com cada uma das personagens principais, porém essa série de fenómenos que sucedem constantemente passa a mensagem que, quiçá, felicidade nunca venha a ser adquirida, da mesma forma que para existir uma décima quarta guerra estão outras treze no passado. Por muita tentativa-erro por parte de todas as personagens, estas continuam a questionar o propósito da sua existência. Já Friedrich Nietzsche dizia “Deus está morto” invalidando o monólogo inicial:

Everything that lives is designed to end. We are perpetually trapped in a never-ending spiral of life and death. Is this a curse or some kind of punishment? I often think about the god who blessed us with this cryptic puzzle and wonder if we’ll ever have the chance to kill him.

No grande clímax narrativo de NieR:Automata é quase assumido a morte de todas as personagens, incluindo as principais, sendo que a última tarefa passa pelos Pods 042 e 153 (pequenos robôs que prestam assistência aos heróis e heroínas da história): apagar toda a informação do Projeto YoRHa e recomeçar o ciclo mais uma vez. Porém, com tudo o que se passou até ao momento uma evolução inesperada na sua programação foi provocada, semelhante ao nascimento de emoções ou uma consciência. Num ato conjunto de desobediência os Pods decidem reconstruir 2B e 9S na tentativa de quebrar esta espiral de sofrimento e dor. É após este momento que NieR:Automata brilha, mostra todo o seu génio e deixa-me completamente sem palavras.

Num último esforço quase kafkaesco tu e os Pods têm de destruir os créditos finais numa sequência semelhante aos shoot’ em ups verticais. Esta listagem de nomes sucessiva detalha os criadores de NieR:Automata, não os que assombraram toda a narrativa, mas sim os literais arquitetos do videojogo; os Deuses dos deuses, cumprindo com o desejo perverso de 2B no início da narrativa. Ao início a torrente de inimigos é branda e fazível, mas progressivamente mais difícil até a impossibilidade da tarefa ser reconhecida para um esforço a solo. Não ajuda o facto que após cada morte é colocada uma questão como, por exemplo, “Será tudo isto inútil?” “Achas que os videojogos são coisas ridículas?” “Admites que este mundo não tem significado?”.

Por cada vez que o teu esforço é bafejado pela doce libertação da morte, aparecem várias mensagens de outros jogadores, frases encorajadoras para motivar a persistir e não desistir. Após imensa insistência e aceitar chamar reforços via um lembrete no ecrã a tua nave é rodeada por outras tantas, servindo como escudos sacrificiais, com a banda-sonora a atingir proporções épicas, repletas de várias vozes em diferentes idiomas numa faixa aptamente intitulada Weight of the World. Terminada esta sequência e com os Deuses dos deuses metatextualmente derrotados o fado de 2B, 9S e A2 foi quebrado e o ciclo perpétuo de conflito interrompido de vez. No zénite da sua experiência e quando mais foi necessário NieR:Automata deixou claro que é valioso encontrar a força necessária não só em ti, mas também nos outros, caso ter alguma réstia de esperança fosse o desejado; existe mais na vida para além das nossas derrotas e do nosso desespero em vivenciar o dia-a-dia.

Independentemente das odes e louvores que cante sobre NieR:Automata, continua a ser difícil colocar por palavras a razão exata pela qual vibro com todos os seus elementos. O enredo teve tudo para cair redondamente no esquecimento por um mergulho profundo numa maré repleta de histórias absurdas e dramáticas, mas a maneira como os temas são interligados com as personagens, as temáticas com as filosofias e como são subsequentemente subvertidas as expectativas fazem deste elemento algo verdadeiramente especial. A jogabilidade construída pela PlatinumGames conjuga tão bem com todos os outros elementos e apresenta tanta perspetiva diferente pela qual encarar a ação que muito difíceis são de atingir estes calcanhares fictícios.

Fica a faltar, porém, explicar uma última coisa. Testemunhado este evento epopeico, marco definitivo na história dos videojogos, nada iria preparar-me para o seu derradeiro truque.

Antes de terminar esta experiência e concluir o clímax, NieR:Automata confronta-me com uma última escolha: ser a luz no fundo do túnel para outro ser humano. Esta decisão carrega, no entanto, um preço muito acentuado: o sacrifício literal de todo o progresso salvo até à data, sem exceção. Todas as horas despendidas até ao momento cheias de emoção, felicidade, riso, tragédia, tristeza; tudo transformado num gesto altruísta. Conseguiria fazê-lo sabendo que não receberia qualquer reconhecimento, inclusive auxiliar alguém que não conheça ou não goste, ou simpatize? Para fãs da saga isto não constitui novidade dado que NieR:Replicant retira do chapéu uma tirada semelhante, porém, em NieR:Automata, o sacrifício implica ajudar um outro ser humano, alguém que passará pelas mesmas tribulações que tu e eu, mas que irá necessitar de uma ajuda preciosa para encontrar o seu derradeiro propósito num mundo sem um. Yoko Taro quer propor que a vida vai além do sofrimento, dificuldades, miséria e adversidades enfrentadas. Uma ortodoxa e diferente maneira de contar uma história informa-te que é possível encontrar propósito no esforço produzido até ao momento e direcioná-lo como um ato generoso e bondoso.

Tanto tu como eu vivemos numa realidade dominada pelo choque das más notícias recorrentes ou pela constante desumanização do ser humano através dos vários meios de entretenimento. Existimos em conflito ininterrupto, num ciclo sem fim sobre vida e morte. Só em Portugal este ano, por exemplo, segundo a worldpopulationreview.com, são mais de 570,000 casos identificados com depressão e nem vamos a meio do ano. De acordo com a ourworldindata.org, cerca de 800,000 pessoas morrem, mundialmente, por suicídio todos os anos. Conduzimos com alguma banalidade as nossas vidas num mundo que demoniza o estranho e aparenta apoiar falta de empatia e compaixão. Não consigo culpar-te se estiveres adormecido ou anestesiado com esta torrente repetitiva dia após dia, mas NieR:Automata sugere algo diferente: apesar do beco sem fim provocado pelas diversas dificuldades da vida, devemos sempre rejeitar este ciclo na esperança por um futuro melhor, demonstrando amor e compreensão pelo próximo. Haverá melhor maneira de o fazer senão por um ato altruísta? Evidenciar a nossa crença em algo mais forte do que a nossa individualidade? Acredito honestamente que não.

Só assim existirá catarse, no sentido de purificarmos e libertarmos os nossos sentimentos e emoções reprimidas e conseguir demonstrar o que há de realmente glorioso na humanidade.

Fontes:

https://nier.fandom.com/wiki/NieR:Automata
https://en.wikipedia.org/wiki/Yoko_Taro
https://drakengard.fandom.com/wiki/Yoko_Taro
https://drakengard.fandom.com/wiki/Taro_Yoko/Taroverse
http://book.bionumbers.org/how-quickly-do-different-cells-in-the-body-replace-themselves/https://www.scienceabc.com/humans/true-body-completely-changes-every-7-years.html
https://en.wikipedia.org/wiki/The_Second_Sex
https://literariness.org/2016/05/06/simone-de-beauvoir-and-the-second-sex/
https://nier.fandom.com/wiki/Simone
https://www.bertrand.pt/livro/o-segundo-sexo-vol-1-simone-de-beauvoir/16036407
https://nier.fandom.com/wiki/Memories_of_a_Songstress
https://en.wikipedia.org/wiki/Jean-Paul_Sartre
https://www.bertrand.pt/livro/o-ser-e-o-nada-jean-paul-sartre/25208312
https://nier.fandom.com/wiki/Jean-Paul
https://filosofianaescola.com/metafisica/a-existencia-precede-a-essencia/
https://nier.fandom.com/wiki/Pascal
https://nierautomata.wiki.fextralife.com/Pascal
https://www.bertrand.pt/livro/pensamentos-blaise-pascal/21983523
https://plato.stanford.edu/entries/pascal-wager/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aposta_de_Pascal
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pensamentos_(Pascal)
https://nier.fandom.com/wiki/Engels
https://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Engels
https://plato.stanford.edu/entries/kierkegaard/
https://en.wikipedia.org/wiki/S%C3%B8ren_Kierkegaard
https://nierautomata.wiki.fextralife.com/Kierkegaard
https://pt.wikipedia.org/wiki/Iluminismo
https://www.bertrand.pt/livro/critica-da-razao-pura-immanuel-kant/76355
https://www.marxists.org/reference/subject/ethics/kant/reason/ch01.htm

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