Se ainda têm na vossa posse edições da Revista Oficial PlayStation, lançadas entre 1998 e 2002, desafio-vos a folhearem as suas primeiras páginas. Se aceitaram fazer esta viagem no tempo comigo, acredito que tenham encontrado um segmento especial dedicado ao mercado japonês e aos seus lançamentos mensais. Nesse segmento, os leitores portugueses tinham acesso a pequeníssimas imagens dos próximos exclusivos PlayStation, acompanhadas por curtas descrições que anteviam os videojogos das maiores produtoras da época. Foi num destes artigos que vi pela primeira vez imagens de Final Fantasy IX e Dragon Quest VII, e onde descobri títulos como Aconcagua, Breath of Fire IV e Elder Gate, este último desenvolvido pela Konami. Recordo-me de folhear as revistas e reencontrar estas imagens promocionais na esperança de saber mais sobre este peculiar RPG da Konami, que teimava em não sair. Os anos passaram, Elder Gate nunca foi lançado e, na minha mente, determinei que tinha sido cancelado. Mas não foi.
Como Elder Gate, outros títulos não localizados marcaram as páginas deste segmento esquecido. Muitas promessas que ficaram por cumprir, numa era onde nem sempre tudo chegava à Europa. Mas a memória ficou comigo e foi apenas com a chegada do YouTube que reencontrei Elder Gate em vídeos de baixa qualidade, em formato walkthrough, sem mais contexto ou informações sobre o seu lançamento. Afinal Elder Gate existia, só não fora lançado no ocidente. Na minha cabeça, o assunto estava arrumado. O que só saia no Japão para sempre lá ficava, assim era a lei natural desta indústria criativa – onde nem sempre é possível chegar a todos os mercados devido a custos de tradução.
Ao contrário da minha postura mais passiva, que me levou a aceitar uma decisão feita anos antes – e que, para todos os efeitos, eram impossível de contornar -, algures no ocidente, outros fãs decidiram mudar a lei natural da indústria dos videojogos e arriscar a sua sorte em recuperar e ressuscitar títulos para sempre perdidos no passado. Um verdadeiro David contra Golias. Perante a conclusão “se queres jogar, aprende japonês”, estes fãs responderam “e porque não existir mais acessibilidade”, dando origem a um processo de tradução e compaixão comunitária que nasceram nos anos 90 e que se mantêm forte até hoje.
Elder Gate ainda não foi traduzido, mas Aconcagua foi. O título de aventura gráfica, desenvolvido pela própria Sony Computer Entertainment e lançado em 2000, é agora acessível ao público ocidental. Aconcagua está completamente traduzido, não precisamos de guias para compreender o que é necessário fazer e até a UI foi reajustada devido às alterações de carateres. Claro que ainda é necessário encontrar o seu ROM e a tradução, um processo que não será acessível para todos os jogadores, mas se ultrapassarmos essa barreira, só resta jogar e embrenhar-nos num jogo de culto que ganhou agora uma nova vida. Tenho-o no meu PC, pronto a ser jogado, e eu nunca pensei que isso fosse possível. Mas é possível, graças à comunidade de tradutores independentes que se atiram regularmente para estes projetos colossais sem mais nada do que a sua força de vontade e determinação. Elder Gate ainda não tem uma tradução em inglês, mas agora acredito que seja possível e esta é a diferença que torna a preservação de videojogos e as comunidades de fãs tão importantes para a indústria de videojogos.

De certeza que já repararam que a preservação de videojogos tem sido o tema que mais abordei este ano – e presumo que continuará a ser. Eu vivo fascinado com o trabalho destes fãs e criativos que retiram parte do seu tempo pessoal para darem a outros jogadores a possibilidade de experienciarem e conhecerem novos videojogos. Estamos a falar de títulos sem representação legal, cujos direitos permanecem no limbo das burocracias, muitos deles impossibilitados de receber uma tradução oficial – ainda que existam casos positivos, como Project Zero: Mask of the Lunar Eclipse, Live A Live e Trials of Mana, que foram finalmente estreados no ocidente com novas traduções – e que se arriscavam a ficar presos para sempre numa só região do mundo se um grupo de fãs não ambicionasse em desafiar o destino. Isto é incrível, daquelas ações cooperativas que nos enchem o coração. Várias pessoas de regiões, crenças e origens diferentes, que se juntaram para dar aos seus semelhantes a oportunidade de jogar algo único.
Não vou incorrer num olhar histórico sobre as traduções em videojogos, ou fan translations, mas o site ROMhacking identifica Shiryou Sensen 2: War of the Dead Part 2 como a primeira tradução, realizada pelo utilizador Oasis em 1997. Desde essa data que tivemos traduções icónicas como Mother 3, que continua a ser o título mais requisitado pela comunidade para receber um lançamento oficial; Racing Lagoon, o clássico da Squaresoft, lançado durante a época dourada da produtora japonesa, lado a lado com nomes como Parasite Eve e Brave Fencer Musashi; Sweet Home, a adaptação do filme do mesmo nome, que seria uma das inspirações para Resident Evil; Valkyria Chronicles 3, o único título da série que não chegou ao ocidente; Shining Force III – Scenario 2 & 3, a conclusão do clássico da SEGA Saturn, que ficou incompleto no ocidente; Treasure Conflix, um jogo da Squaresoft esquecido, lançado apenas por Satellaview; Mizzurna Falls, o jogo de culto da Human Entertainment, que ambicionou recriar uma experiência open world na PlayStation, com fortes inspirações em Twin Peaks e na obra de David Lynch. E ainda mais: Tear Ring Saga, Bahamut Lagoon, Clock Tower: First Fear, Shin Megami Tensei I & II, Doctor Hauzer, Star Ocean: Blue Sphere, …Iru!, Dr. Slump, LSD – Dream Emulator. A lista é interminável e, segundo o site ROMhacking, são mais de 2000 títulos traduzidos – e não apenas para inglês, mas para tantas outras línguas. Se quiserem ir ainda mais a fundo, reparem na quantidade de projetos de tradução que foram iniciados e terminados entre 2018 e os primeiros meses de 2023.
Podemos olhar apenas para o que já foi feito, mas penso que é também importante ter noção do que está a ser atualmente trabalhado no campo das fan translations e essa foi a minha maior motivação para escrever este texto. Germs: Nerawareta Machi, um dos títulos mais fascinantes do catálogo da PlayStation – um primeiro exemplar da experiência open world nas consolas, com um foco na narrativa e na investigação –, vai finalmente receber uma tradução para inglês depois do lançamento de versões em espanhol e russo. Hilltop, que nos trouxe as traduções de b.l.u.e. Legend of water e do já mencionado Racing Lagoon, trabalha atualmente em Boku no Natsuyasumi 2, que marcará a estreia não oficial da série slice of life no ocidente – até agora representada apenas pelos spin offs Attack of the Friday Monsters! A Tokyo Tale e Shin-chan: Me and the Professor on Summer Vacation– e eu mal posso esperar para finalmente experimentar esta série de culto. Também destaco o trabalho de SnowyAria, que trabalhou em projetos como R?MJ The Mystery Hospital e Seven Mansions: Ghastly Smile, e que agora traduz o guião de Ancient Roman, um RPG da PlayStation que parece ser tão mau, como fascinante. Sakura Wars 2, Tokimeki Memorial 2, The Legend of Heroes III: The White Witch também irão receber traduções em breve – e acho fascinante o facto destas traduções serem anunciadas através de trailers, demonstrando que estes projetos já gozam de algum mediatismo.
Talvez Elder Gate nunca seja traduzido. Nem todos os videojogos não localizados terão a mesma sorte porque irá depender do trabalho (quase sempre) não remunerado de um punhado de fãs. Mas existe a possibilidade que essa tradução aconteça e é isso que acho tão interessante. O videojogo que vi em recortes pequeníssimos, de baixa qualidade, não só é acessível na sua versão original, como poderá um dia ser jogado em inglês. A preservação de videojogos é um tema cada vez mais importante, tão importante que já repeti esta mesma frase várias vezes ao longo de vários textos, mas é preciso sublinhar e torná-la ainda mais evidente para que todos possam compreender o seu impacto no futuro da indústria. Os videojogos que identifiquei em cima podiam ter desaparecido, mas não só não desapareceram, como estão disponíveis para um novo público.
Enquanto escrevia este texto, fiquei a saber, pelo colega Shiryu, que Rent a Hero No.1 recebeu finalmente uma tradução completa em inglês. Se são fãs da Dreamcast e do seu catálogo, presumo que esta notícia deixou-vos felicíssimos da vida. Espero que sim. Agora pensem. Rent-A-Hero No.1 foi lançado no Japão em 2000. Nunca chegou ao ocidente porque a morte da Dreamcast já parecia ser incontornável. 23 anos depois, aqui está Rent-A-Hero No.1 pronto para ser jogado. Têm um computador? Joguem. Têm um excelente smartphone? Força. Compraram a Steam Deck ou uma consola dedicada à emulação? Já sabem o que fazer. Ainda têm a vossa Dreamcast e conseguem gravar facilmente CD? Regressem a 2000 da melhor forma. Tantas possibilidades, tanta acessibilidade mesmo contra todas as adversidades. Agora imaginem se os estúdios levassem a preservação de videojogos a sério. Quão linda seria a puta da vida.