Um Adeus GLITCH

Escrever acerca do significado que o GLITCH Effect tem para mim, não é tarefa fácil. Talvez, por isso, como tudo aquilo que queremos manter para sempre no coração, tenha adiado fazer esta reflexão. Tomei o meu tempo e deixei-me estar mais um pouco. É assim que acho que deve ser com as coisas bonitas da vida.

Lembro-me das primeiras ideias sobre o GLITCH. A ideia de criar um projeto diferente, os brainstormings para encontrar o nome perfeito, o tema perfeito, o logo perfeito. A única coisa que já tinhamos encontrado era o nosso companheirismo – o meu, do Canelo, Duarte e David – e a certeza de que o valor mais alto deste projeto seria a independência. Isso e que diríamos o que bem nos apetecesse.

No GLITCH – e nos meus companheiros de aventura – encontrei-me como jogadora, critica de videojogos, jornalista investigadora, curiosa, apresentadora e profissional da industria do gaming. Mas, também, como amiga e como Mulher dos Videojogos. Percebi que, nos valores comuns, há encontro e que na unidade há força. Que é possível escrever-se com liberdade, atuar com independência, e ser fiel a princípios basilares como o é a transparência, quando se escreve acerca de videojogos. Percebi, também, que, apesar de às vezes parecer inatingível, é, sim, possível ser Mulher nos videojogos e não sentir, numa sala de trabalho, desigualdade ou discriminação de género.

Sempre estivemos muito à frente do tempo. Saímos da BGamer com sangue na guelra e isso levou-nos a quebrar barreiras. Sinto um orgulho imenso em ver tudo o que criámos – com especial destaque para o nosso podcast (que estreou há 8 anos, just saying) e, mais tarde, o videocast na Twitch. Durante anos, encontramo-nos em casa do Duarte, para gravar (ou transmitir em direto) o conteúdo do GLITCH, e ainda me lembro que, durante algum tempo, o suporte dos microfones eram almofadas de sofá. A prova viva de que, para fazer acontecer, “só” é preciso fazer. E nós fizemos muito. Juntos. De forma consistente.

Em tantos anos de GLITCH, tanto mudou na minha vida. Mas, este projeto bonito, manteve-se sempre, firme – houve até momentos em que foi a única constante, a garantir-me que, no olho da mudança, algumas coisas são sempre âncora. Como todas as relações duradouras, teve fases, momentos bons e maus, avanços e recuos. A mim, em todos eles, nunca me faltou a certeza de que este é um dos projetos dos quais mais me orgulho de ter feito parte. Agora, passados oito anos, chegou a altura de encerrar um capítulo, celebrar, e dizer que estou grata por tudo o que o GLITCH foi e é.

A quem acompanhou o nosso trabalho, nos viu, ouvi e leu – se divertiu e informou connosco – um obrigada sincero. Aos meus colegas – mais que isso, amigos – o maior obrigada por esta aventura inesquecível. Tenho orgulho em todos eles e em tudo o que cada um alcança diariamente, com os seus projetos pessoais e profissionais. Nenhum de nós vai a lado nenhum, até porque já são décadas a fazer parte da indústria dos videojogos em Portugal. De coração na boca, sangue na guelra, e comando na mão.

Fomos disruptivos e seremos, para sempre, impossíveis de resolver, tal e qual como um bom GLITCH deve ser – pronto a abalar a estrutura e a agitar águas calmas, a cada repetição.

GLITCH Effect. GLITCH Effect never changes.

Vanessa Dias

Antes de o GLITCH ser o GLITCH, era uma vontade mais do que uma ideia. A vontade era de pensar sobre os videojogos pela perspectiva dos autores, puxá-los debaixo dos nomes absolutos dos estúdios e editoras, de explorar e expor os conceitos que davam vida ao design, às mecânicas e, por fim, aos jogos. Um artigo por mês, coisa robusta sem obedecer aos limites de caracteres dos tempos do MyGames ou à formatação das páginas da BGamer. Esta vontade, que nunca chegou a ter nome, nunca se concretizou.

Quando partilhei com a Vanessa a vontade, esta passou a uma ideia menos indulgente e mais exequível. Um site, um artigo por semana, de opinião, experiência pessoal, ou exploração de um tema, tocar nos assuntos sem espaço nas publicações mainstream, fosse por serem controversos ou tóxicos, tabu ou por não quererem arriscar e queimar pontes com as editoras. O objectivo não era sermos irreverentes ou dizer o indizível, simplesmente não termos amarras. O David viria a juntar-se e a concretizar a imagem do site e a garantir que os vídeos tinham um aspecto profissional. O Canelo cimentou o tom cómico e incisivo e garantiu a disciplina do grupo.

Mas antes de tudo, a Vanessa deu-nos nome: GLITCH. Numa indústria com a opinião profissional higienizada, era o que pretendíamos ser. Nunca fomos rudes (não gratuitamente, pelo menos), mas fomos sempre honestos nas nossas opiniões. Errámos, certamente, mas sem censura. Divertimo-nos, foi desafiante e trocámos pontos de vista, nem sempre consensuais. Fomos coerentes, embora nem sempre – houve ideias demasiado ambiciosas –, mas o mais importante para nós, foi saber que surpreendemos quem nos leu e ouviu. Não quebrámos recordes, isso é certo. Éramos o “underground” (com números de visitas de “underground”), e valia a pena por todas as vezes que alguém nos dizia que gostava de nos ler, que éramos uma lufada de ar fresco entre os sites de videojogos. Pelo menos enquanto me mantive activo.

Ser pai tirou-me o tempo, e ainda que tenha escrito mais uns textos soltos e umas análises ocasionais, o GLITCH continuou sem mim, evoluiu. Quis despedir-me com um texto há uns anos, mas pediram-me que esperasse – tinham esperança que me organizasse e conseguisse voltar. Isso, ou fizeram cerimónia, não sei ao certo. A verdade é que, seja a idade ou a parentalidade, a vontade de escrever sobre videojogos passou. A vontade original nunca foi mais do que uma intenção, para o bem e para o mal. O bem: um projecto criado das diferentes abordagens e personalidades de quatro amigos que se cruzaram na redacção da BGamer. O mal: sinto que ficou muito por fazer e dizer.

Há uma falência criativa endémica nos AAA e uma pretensão de que videojogos são arte por defeito que cega os “gamers”. E assim se continua a alimentar remasterizações de jogos com 3 anos, pre-orders (pré-reserva é um pleonasmo criminosamente estúpido), DLCs, live services e Game Awards. Os videojogos podem ser arte, mas poucos o são. A verdade é que não precisam de o ser também. O mais importante é os videojogos serem videojogos, não cinema interactivo, livros interactivos, música interactiva, ou outra coisa que se lembrem de emular. Há poucos autores que exploram o potencial do meio, a sua identidade, menos ainda aqueles a quem lhes é permitido explorar outra coisa que não a próxima sequela ou o próximo remake/remaster.

Eu ainda jogo, mais indies do que AAA, e mal posso esperar que os meus filhos comecem a jogar. Com alguma sorte, crescem a olhar para a indústria e para as práticas correntes com espírito crítico. Quem sabe, um deles não vira produtor e mova a indústria na direcção certa? Improvável, mas uma pessoa pode sonhar. Quanto a mim, relego-me ao papel de jogador e mantenho as minhas opiniões offline. Guardo com gosto as boas memórias do GLITCH, e às más memórias respeito-lhes o direito a serem lembradas, mas não prendo com elas. O Captain! My Captain!

Duarte Ferreira

Dizer adeus não é fácil. Mas é terapêutico. É necessário. É o ponto final de um arco. O GLITCH Effect foi, para mim, mais do que um simples projeto pessoal – ou uma carolice, como alguns dos nos nossos colegas se referem aos projetos da nossa inocente bolha. Para mim, foi um processo, uma formação e, durante muito tempo, um espaço seguro, um abrigo para os meus momentos mais baixos, onde me pude abstrair com os meus amigos e explorar conceitos a desenvolver. Alguns concretizados, outros nem por isso, mas sempre valiosos.

O que começou como uma simples conversa de refeitório entre a Vanessa e o Duarte, acabou por acontecer. Nunca, naquela altura, pensei que ao fim de um simples verão, estes dois colegas de estágio depositassem tanta confiança e amizade em mim, trazendo ainda outro amigo de atrelado – o Canelo.

Após oito anos de podcasts, videocasts, artigos de opinião e outras brincadeiras mais, despedimo-nos do GLITCH Effect como começámos e quase sempre tentámos operar: em sintonia. Quero acreditar que o fazemos por boas razões. Demos o que pudemos a esta indústria com a nossa inocência e aspirações profissionais, que nos abriram outras portas e fizeram-nos crescer. Pelo menos, foi o que o GLITCH Effect me deu.

Quero despedir-me com agradecimentos. Ao Duarte pela motivação que deu ao projeto e por me ter dado abrigo (e às vezes até jantar) todas as semanas que nos encontrávamos na sua casa para falar de algo que tanto gostávamos. À Vanessa pela amizade, cumplicidade e pelas inspirações e lições que sinto quem me ajudaram a crescer tanto a nível pessoal, como profissional. E ao Canelo, pela paciência e perseverança em manter o projeto vivo, por ser a cola UHU do grupo e, claro, por ser um bom amigo.

Obrigado ainda a todos os que vieram até cá participar em diversos momentos e a todos os que nos seguiram, quer desde o início do projeto ou só agora para o fim.

Assim, obrigado GLITCH Effect e até um dia.

David Fialho

Oito anos. 2015 a 2023. 70,128 horas, 4,207,680 minutos e tantos segundos que não vale a pena estar a contá-los. Oito anos são uma vida. No mundo digital, oito anos são uma eternidade. “Não te enganes, já somos dinossauros da área”, disse-me a Vanessa ao telefone, quando lhe disse que queria terminar o GLITCH. A Vanessa tem razão. Somos dinossauros, daqueles ainda animatrónicos, mecanizados e sem um pingo de CGI para disfarçar as rugas da idade.

Nós vimos e fizemos imenso em oito anos. Acompanhámos a onda dos sites independentes que, noutra internet e noutro Portugal, lutavam contra os então dinossauros das revistas. Os ponteiros do relógio são cruéis e irónicos, sempre foram, então quis o tempo que víssemos esses mesmos sites independentes a desaparecerem um a um, de ano para ano, a um ritmo assustador. Gravámos podcasts antes de se tornarem moda, quando ainda se contavam pelos dedos da mão, e até apostámos no streaming quando os nossos colegas ainda se mantinham focados nos conteúdos escritos. Mordemos as mãos que nos tentavam alimentar porque sempre fomos a favor da verdade jornalística e da objetividade na crítica de videojogos. Mais importante: fomos uma boa equipa.

O GLITCH é o GLITCH porque o Duarte, a Vanessa e o David assim o conceberam. Quando recebi o convite, o GLITCH já era o site que vocês conhecem. A missão já estava estipulada: artigos originais, centrados na personalidade da equipa, longe das notícias diárias e dos conteúdos adaptados que alimentavam a maioria dos sites. Ainda não tinha o meu cartão de funcionário e o GLITCH já ia contra as normas com análises, vídeos, streams e até podcasts em vários formatos e feitios. Quando bati à porta, o GLITCH ainda não se tinha estreado, mas a sua linha editorial já estava traçada. Se acompanharam o nosso trabalho ao longo destes oito anos, ficam a saber quem merece todo o destaque: a minha equipa. Eu só adicionei um enorme amor pela arte da laracha, uma pitada de resiliência e um je ne sais quoi de humor sarcástico. Agora aqui estou eu, com as chaves na mão. Que lata!

A minha mente começa a divagar. Existem muitas memórias soltas, bons momentos que devem ser só nossos. É escusado recontar tudo. Uma coisa é certa: eu sinto orgulho no GLITCH. Podia ter sido melhor? Tudo podia ser melhor. Mas as páginas que escrevi deixaram-me crescer. Tornei-me melhor crítico, desafiei constantemente a minha escrita e saí da minha zona de conforto sempre que pude. Comecei a ler e a pesquisar mais sobre Game e Narrative Design. Sem o GLITCH, não seria professor. Arrisco-me a dizer que não teria voltado ao cinema e ao guionismo. Muitas memórias, muitas emoções.

Este é o meu último texto no GLITCH. Estas são as últimas palavras que escrevo para um site que me acompanhou ao longo de oito anos. Um site que foi um alento, um orgulho e um desafio constante. O que posso dizer mais? O que há mais para escrever? Posso mandar uma última laracha: este ponto final não serve apenas de despedida. É um ponto final porque a obra está concluída. Se quiserem saber quem era o GLITCH e quem foi a sua equipa, está tudo aqui. Os textos serão imortalizados até o WordPress deixar de funcionar. Não sei como o tempo recordará o GLITCH, mas se inspirámos alguém, os oito anos valeram a pena.

Não me posso despedir sem os sentimentalismos do costume. Duarte, Vanessa e David: obrigado pelo convite. Espero ter feito um bom trabalho nestes últimos anos e mantido viva a irreverência do GLITCH. Um enorme bem-haja ao André, companheiro de armas e uma verdadeira ajuda durante os momentos mais complicados. Um abraço enorme ao Octávio e ao Francisco, que protagonizaram os últimos dois anos com artigos de opinião e análises. Um adeus e até à próxima a vocês, senhores e senhoras da plateia, que representam o público que cresceu lenta, mas seguramente ao longo destes oito anos. Agradeço-vos pelo apoio que nos deram. Tantos agradecimentos, tanto amor.

Agora saiam daqui, vão escrever e elevar a nossa área. Continuem o trabalho, sejam melhores.

João Canelo

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