Não gostei dos God of War para a PS2 e nem joguei os da PS3. Acho o conceito apelativo, adoro mitologia grega, mas havia alguma coisa nos jogos que não encaixou comigo, a jogabilidade era datada, a personagem falava em Caps Lock e não tinha paciência para tantos QTE. Vai daí, fiz a compra mais inteligente que foi God of War para a PS4 e sabem que mais? Adorei! Talvez tenha sido a mudança de foco, de cenário e de mitologia, mas algo neste jogo chamou por mim. E o frio! Ouvir o Neil Gaiman a falar de mitologia nórdica ajudou assim só um bocadinho…
Mais do que uma melhor narrativa, o jogo tinha as melhores personagens e o tempo que passámos juntos foi o suficiente para ver que estava perante uma obra de arte – uma daquelas que mexe connosco e nos faz pensar em certas e determinadas coisas. Neste caso, na minha família.

Este God of War aborda temas interessantes e pessoais: a morte de uma mãe, a relação entre um pai e um filho e a autodescoberta das personagens. Parece que foi escrito por mim – para mim. Correndo o risco de soar pedante.
Como homem em construção, não me consigo identificar com o Kratos, o Deus da Guerra. Não possuo o seu invejável físico, não grito com as pessoas nem distribuo pancada de meia-noite. No entanto, como ser humano, identifico-me com a personagem que pensava que ia odiar: o jovem Atreus. De todos, ele é o mais humano…
O jogo arranca com uma chapada, estamos a preparar o funeral da nossa mãe. Apesar de ser um gimmick batido para iniciar qualquer peça de ficção, o jogo faz um bom trabalho em ilustrar as emoções do jovem, seja em reflexões, diálogo ou acções. Mesmo quando não está presente, sabemos como se está a sentir. Nem me refiro aos cinco estágios do luto, mas como uma criança lida com as coisas.

O jogador não chega a conhecer a senhora (nem precisa), mas vai descobrindo o impacto que esta teve na vida das personagens. Para Atreus, ela era a mãe. E uma mãe é uma mãe. Era ela que contava as histórias, que educava o filho e o ensinava a ser pessoa. Também fazia de pai. E partiu cedo demais.
Para um jovem Atreus, isto é estupidamente confuso e injusto. Por que motivo é que aquela pessoa teve de desaparecer? Tão rápido e inesperado, sem oportunidade de se justificar ou despedir? Por que motivo é que a pessoa-pai distante e austera ficou? Se os deuses existem (e existem naquele mundo), que piada de mau gosto foi aquela? Ainda assim, e por tudo o que sente, por que razão busca incessantemente pela validação de Kratos, seu pai? Atreus mostra que sabe caçar, que consegue lutar tão bem como Kratos (e safou-me de muitas!), que pode levar as cinzas da sua mãe, mas está sempre a ser empurrado para trás, que não é bom o suficiente, que falta isto e aquilo. Que é uma criança e que não sabe tudo sobre o mundo. Não obstante, o jovem não desanima nem perde a sua alegria.

Atreus não sai ao pai. Não tem o corpo de um guerreiro nem a sua mentalidade. É um pouco fracote, adoentado, gosta de histórias, de línguas e da natureza. Ele sabe disto tudo, acha que o pai tem vergonha e que não sente orgulho no filho. De novo, ele não desiste.
Sintomas de um “problema maior”, Kratos falha em ver que a culpa é sua. Por não estar presente, a outra pessoa teve de assumir o controlo e é normal que a criança emule os exemplos mais próximos. E essa pessoa desapareceu. É possível que o que passe por vergonha ou falta de orgulho também possa ser confusão ou medo do desconhecido. Quem são estas pessoas? A criança que tem uma identidade e vontade própria, mas decide passar o jogo a imitar o pai para se aproximar dele; o pai que já está moldado e resignado e apesar de nenhum monstro, titã ou deus lhe fazer frente, está uma criança a tentar furar a pedra dura. E porque ainda há alguma coisa para aprender, cada personagem tem a sua aparição. Mas será tarde demais para os dois?

É tarde para a mãe, pai e filho aprenderem os segredos uns dos outros, os seus passados e futuros, mas ainda há tempo para o pai e para o filho. Haverá vontade? Haverá alguma missão que os empurre porta fora por caminhos inexplorados que os force a comunicar, a despejar tudo o que guardam, as zangas, as revoltas, as mágoas, desejos e esperanças? Provavelmente, mas… a vida real não é um jogo. Não há criaturas mitológicas para derrotar, cabeças falantes, bruxas, passagens para outros mundos ou deuses vingativos. Há apenas a monotonia de um dia depois do outro, a distância física e emocional, as cicatrizes das palavras e os gestos ou a ausência destes.

Há várias metáforas neste artigo, e matar um deus imortal pode significar a destruição de algo dentro de nós que nos liberta. O quê? Quando? Como? Porquê? Não sabemos…
E então jogamos; sentimos algumas coisas bonitas e tristes; escrevemos estes artigos sobre personagens virtuais que podiam ser bem reais. Este artigo podia ser sobre mim, mas é sobre o Atreus. Tu és o Atreus. Ela é o Atreus. Algumas pessoas são a mãe do Atreus e lançaram muitas pessoas em jornadas inesperadas, mas se fores um Kratos, acaba de ler isto e faz qualquer coisa. Grita BOY e leva o teu miúdo, ou miúda, numa viagem. Falem. Ouçam.
Não há muitas segundas oportunidades nesta vida, mas se surgirem, agarrem-nas.
