Por: Francisco Isaac
O título pode sugerir que este artigo será dedicado a falar dos developers que desenham as belíssimas narrativas do mundo dos videojogos, quando, na realidade, o foco de hoje é outro… aliás, outros. Então quem são eles? Os contadores de histórias, mais especificamente, os que estão dentro do mundo digital e assumem um papel de detentores dos pergaminhos do passado. Uma introdução talvez um pouco extensa, verdade, mas é bem ao jeito destes contadores de ladainhas, historietas e contos que fazem parte daquele “mundo” especifico em que estamos a viajar por.
E quem são alguns destes contadores de histórias? O músico dos Rito, Kass; o intelectual poeta romano, Virgílio; o aprumado trovador e visconde, Dandelion; e o venerável ancião de Spira, Maechen. Estas quatro personagens não são os protagonistas e também não estão envolvidos no centro da narrativa, mas consagram na sua presença um elemento unificador importante: acrescentam pedaços de informação sobre aqueles mundos. São estas personagens que desenvolvem as mitologias de certos pontos culturais internos e narram acontecimentos que não foram vivenciados pelas personagens que comandamos.
É raro termos este tipo de “narrador” interno opcional, que trata de nos submergir nas profundezas destas histórias, criando no jogador a sensação que está num mundo bem mais largo e “velho”, carregado de uma história que vai para além da nossa presença ou influência. Curiosamente, todos eles partilham de dois elementos decisivos na identificação do seu papel: possuem a tradição oral, mas não deixam de tentar inscrever no pergaminho o seu conhecimento, com só Virgílio de Dante’s Inferno a escapar neste sentido.

Comecemos por olhar para Kass, de Breath of the Wild, o músico oficial dos Rito e, talvez, um dos últimos seres de Hyrule com conhecimento de eventos de outros tempos, já algo esquecidos. Este vivaço mestre do acordeão estudou sob um poeta que viveu a destruição de Hyrule, cem anos antes, tendo esse ancião conhecido Link, Zelda, Urbosa, Mipha, Revali e Daruk. Depois da morte desse sujeito, que vivera dentro da corte da monarquia, Kass manteve a tradição e histórias vivas ao tocá-las alegremente no seu instrumento musical, vivendo quase como um ermita pelas vastas planícies, montanhas e ilhas de Hyrule.
Sempre que Link é surpreendido pela presença de Kass, desenrola-se uma história que acaba com um puzzle e a descoberta de uma nova shrine. Mas o que importa aqui não é o fim da demanda momentânea e sim o relato dos eventos, o quando, como e quem que nos ajudam a conhecer melhor a história de uma terra assolada pelo desespero e esquecimento, mas com uma centelha de esperança e alegria.
A presença de Kass pode parecer uma tentativa em desculpar a ausência de cinemáticas suficientes para contarem a história de Link e Zelda, mas será que elas fazem assim tanta falta? Sim, cenas cinemáticas nunca são demais, mas o papel de Kass consegue ser mais apaixonante, demonstrando que existe uma memória viva e imponente sobre o passado. O correr pelas ermas planícies de Hyrule e, do nada, ouvir à distância um leve acordeão a ser docemente tocado, é dos cliques mais apaixonantes do mundo de The Legend of Zelda.
Dentro da parte musical, encontramos também o sempre entusiasmado, aguerrido (q.b.), um pouco louco, mas bem intencionado Julian Alfred Pankratz, ou, como conhecemos melhor, Dandelion. Um dos companheiros mais próximos de Geralt of Rivia, Dandelion é considerado o maior bardo e poeta de todos os reinos, conseguindo mesmo incutir alguma cultura até aos insípidos nilfgaardianos.
Dandelion tem alguns momentos animados em The Witcher II e III, soltando aquele palavreado enriquecido e que tenta convencer até ao mais mundano dos homens a querer aceitá-lo como um dos seus. Por outro lado, o papel do poeta é também de contar histórias e retirar-nos daquele mood mais fechado do universo de The Witcher, arrancando uns sorrisos a partir daquelas divagações animadas desta personagem.
Na expansão de The Witcher III: Blood and Wine, o bardo solta talvez uma das frases mais potentes de toda a saga:
“Despair is like a stormy sky. Sooner or later the sun must drive away the clouds.”
Mas será Dandelion um verdadeiro historiador? Bem, sim, porque o conceito de bardo, do qual Dandelion provém, é de detentores da história oral de uma cultura, terra ou região, relatando esse storytelling através de canções e música. Não podemos esquecer que o autor das histórias de Witcher, Andrzej Sapkowski, vai buscar tudo a mitos, práticas e lendas da antiga Germânia e dos reinos eslavos que hoje compõem a Polónia.
Por falar em poetas, chegamos a Virgílio, um dos maiores nessa arte em Roma e que foi fundamental para construir a imagem do primeiro imperador, Augusto. Mas isto é a história real… e em Dante’s Inferno? Virgílio é a nossa companhia na descida aos 9 níveis que compõem as terras infernais dominadas por Lúcifer, sendo a voz da razão nos momentos de maior tensão e aquele que relata as histórias das várias almas penadas que ocupam cada um dos níveis do inferno.
Na obra magna de Dante Alighieri, do qual o jogo é 100% inspirado, Virgílio tem o papel de narrar eventos, incutir medo e, também, esperança no protagonista, enchendo aquela viagem tenebrosa com algo “vivo” e interessante.
Dante’s Inferno é um jogo que aparenta ser unidimensional, apenas de combate contra demónios e seres monstruosos, quando, no seu âmago, é algo mais poderoso. É um jogo com vontade de incutir a transmissão oral de eventos das mais diversas personagens históricas e habitantes deste inferos, com o papel de Virgílio a ser decisivo nesta camada mais culta do jogo.
Virgílio nunca é visto pelo jogador como uma personagem chata, incómoda ou um ser desprovido de interesse. É sim um companheiro que nos oferece uma voz astuta e inteligível num ambiente que nos quer arrancar toda a razão do ser, conseguindo envolver-nos na história da civilização europeia da antiguidade, medievalidade e modernidade de uma forma directa, apaixonante e acutilante.
Para fechar, o historiador mais sénior de todos aqui citados: Maechen de Final Fantasy X. Durante a peregrinação de Yuna, Tidus e companhia, Maechen destaca-se como uma personagem que conhecedora das histórias de Spira, capaz de suplantar o conhecimento de qualquer ancião que surja no nosso caminho. Sim, é preciso ter um pouco de paciência para ir pulsando o “X” e ouvir cada traço de texto que nos vai chegando aos olhos e ouvidos, conhecendo assim melhor a história e mitologia de Spira. Para os que ainda estão relutantes em aceitar o papel de historiadores dentro do universo dos videojogos, retirem Maechen da equação de FFX e digam-me, com toda a honestidade, se a história não perde pelo menos 20% da sua inteligibilidade?
A influência deste ancião, no conferir “músculos” a uma das histórias mais emocionantes do universo de Final Fantasy, é fundamental para elevar Spira a um patamar superior, carregado de pormenores e elementos históricos que catapultam toda a acção para algo mais emotivo e intrinsecamente fantástico.
O papel destes contadores de histórias que vivem dentro dos CD’s e cartuchos têm uma função determinante para termos uma narrativa potente, compacta e competente. São capazes de suprimir a falta das cenas cinemáticas de uma forma sublime e interessante, demonstrando que a missão do historiador é fulcral para manter a memória viva e enraizada na mente de todos, mesmo que seja através de seres compostos por pixeis. A sua utilidade vai bem mais além de um simples balãozinho ou umas quantas palavras de diálogo, pois é através do seu dialecto histórico que nos deixamos ficar mais convencidos do quão vasto é o lore de um jogo.
Seja para esconder falhas cinemáticas, criar lore, desenvolver narrativas ou brotar outros pensamentos, estes historiadores dentro dos videojogos são também eles peças fundamentais para o sucesso de certas histórias, cumprindo eloquentemente bem num papel que é tão velho quanto a Humanidade.