Apesar do seu desaparecimento em 1997, o legado da Synergy Inc. continua vivo. O seu catálogo é conhecido pelos mais curiosos e a sua marca ainda é relembrada pelos fãs de aventuras gráficas, ao ponto de ser identificada como inspiração para artistas e produtores de videojogos. Mas este legado podia estar perdido na história dos videojogos, relegado a recortes de revistas, a edições físicas cada vez mais raras e dispendiosas, cuja presença online seria mínima – ainda mais do que já é. Contra todas as adversidades, o catálogo da Synergy Inc. ainda está disponível, mas não de forma oficial. É preciso procurar, investigar e remexer nos fóruns e páginas de arquivos que continuam a salvaguardar os videojogos perdidos entre a descontinuação, a luta de direitos, a passagem do tempo e a inacessibilidade de hardware e sistemas operativos.
A preservação de videojogos é cada vez mais pertinente quando identificamos casos como a Synergy Inc., onde o seu desaparecimento podia ser incontornável, como foi para outras produtoras agora esquecidas. É necessário mudar a postura da indústria para que possamos garantir a sobrevivência e disponibilidade de títulos que moldaram a história deste meio ao longo das décadas. Esta é uma tarefa árdua porque a preservação de videojogos, um pouco à semelhança do cinema, nunca foi ponderada. Antes dos serviços digitais, o source code dos videojogos, tal como os seus assets, ficavam enclausurados em disquetes, CD ou computadores das equipas. A produção de videojogos era apenas um passo na carreira para os seus criadores, não havia a preocupação de garantir que esse mesmo produto, pensado e lançado para uma plataforma específica, poderia ser relançado futuramente num novo hardware. As produtoras encerravam, as equipas eram separadas, os direitos perdiam-se e as reedições não justificavam o investimento dos seus criadores e de distribuidoras interessadas. O físico decompõe-se, a presença digital desaparece e a memória dissipa-se para sempre.
Mas ao contrário de tantos outros projetos e catálogos, o legado da Synergy Inc. continua vivo. Talvez não seja tão popular e acessível como fora há 30 anos, mantendo-se sem um lançamento oficial nas lojas e serviços digitais, mas conseguimos jogar qualquer um dos seus videojogos se quisermos. Isto é possível devido ao trabalho de catalogação e arquivamento dos fãs, que, ao longo dos anos, reuniram ficheiros, torrentes, ISO e transportaram os videojogos para o presente. Para tal, foi necessário um processo de atualização e adaptação aos novos sistemas operativos, outro impedimento ao relançamento destes títulos, que possibilitou o funcionamento destes jogos supostamente desaparecidos em hardware atual.
A comunidade continua a pesquisar e a arquivar informações sobre estes videojogos perdidos, seja através de imagens, artigos, entrevistas e cópias físicas ou digitais. Alguns jogos até já foram traduzidos para inglês e outras línguas, dando a novos jogadores a possibilidade de experienciarem títulos que foram inecessíveis durante décadas. Os fóruns construíram-se ao longo dos anos e o arquivo nasceu lentamente até tornar-se acessível. Como podemos considerar ilegal este processo de ressuscitação e partilha quando não existem outros meios para aceder a conteúdo que devia estar sempre disponível e gratuito para qualquer jogador, visto que se encontra descatalogado? E como permitimos que estes jogos, que podem influenciar e motivar jovens criadores a desenvolver os seus próprios projetos ou a revitalizar géneros menos populares – como já aconteceu com os Farming Sim e os point and clicks –, continuem desaparecidos?
Eu não devia ter conseguido jogar Gadget: Invention, Travel, & Adventure, o magnun opus da Sygerney, mas consegui. Está instalado no meu PC, corre através de modificações no DOSbox e pode ser jogado do princípio ao fim como se estivéssemos de regresso a 1993. Se não fosse pela sua comunidade de fãs, que mantém este clássico vivo – clássico esse que inspirou personalidades como Guillermo del Toro, as irmãs Wachowskis e Alex Proyas -, não teria a oportunidade de descobrir um dos títulos mais curiosos, envolventes e perturbadores que joguei em 2023. Se não fosse pelos Youtubers e críticos que criaram artigos e vídeos sobre a Synergy Inc. e a sua marca na indústria japonesa, mais especificamente nos videojogos cinemáticos e point and click, eu nunca teria descoberto Gadget. Esta sensação de perda é horrorosa. É aterrador pensar que podia nunca ter descoberto uma obra artística que me marcou a este ponto. É preciso fazer algo e urgentemente.
A própria Synergy Inc. seria um mistério por resolver se não existissem arquivos, estudos e investigações cientificas sobre o seu catálogo. Fundada em 1986, a Synergy Inc. é uma produtora japonesa especializada no desenvolvimento de aventuras gráficas, ou point and clicks, cujo foco parecia incidir sobre experiências narrativas, mas também surreais, onde a exploração e a interatividade conduziam os seus mundos industriais e pós-modernos. Alice: An Interactive Museum, lançado em 1991, aquele que é considerado como o primeiro videojogo da Synergy Inc. – Refixion, também lançado em 1991, desafia ainda mais a terminologia –, é, tal como o seu título indica, uma viagem interativa por um museu abstrato, onde podemos, através da navegação por setas, encontrar animações e segredos espalhados pelas várias salas, quadros e objetos do museu. L-Zone, lançado no ano seguinte, traz-nos os alicerces para o que viria a ser a obra-máxima da produtora japonesa, uma aventura mais detalhada, misteriosa e tentadora que chega ao mercado dois anos antes de Myst, da Cyan, mudar o género para sempre.

Não é preciso realizar uma pesquisa profunda para determinarmos que Gadget: Invention, Travel, & Adventure é um ponto de viragem para a Synergy Inc., mas também o culminar do seu curto percurso enquanto produtora de videojogos. Em parte, Gadget desafia a definição de videojogo, muito mais próximo a uma experiência cinematográfica, cujo progresso é linear e sempre determinado pela narrativa e os próprios limites espacial e técnicos dos seus cenários pré-renderizados. Apesar de levar-nos numa viagem por um mundo que parece expandir-se para lá do que nos é mostrado e explicado, Gadget move-se como qualquer outra aventura gráfica, de clique em clique, de cenário estático em cenário estático, estilo que Myst viria a popularizar no mesmo ano.
No entanto, Gadget não está interessado em seguir as convenções do género. Não existem puzzles lógicos para ultrapassar ou qualquer outro desafio de qualquer outra natureza. Gadget é uma experiência tão compacta que vive muito mais da narrativa abstrata do que propriamente da complexidade que associamos ao seu género. Na verdade, a produtora japonesa destaca-se exatamente pela ambiência dos seus projetos, pela banda sonora soturna, pesada e industrial; pelos cenários amplos, mas vazios e simétricos – que hoje seriam facilmente apelidados de liminares; pela sua escolha de imagens e planificação. É uma experiência que considero única e que vem munida de um estilo muito pessoal, inesquecível, mas igualmente perturbador e até impróprio para quem não se correlacione tão facilmente com o seu mundo de simulacros.
Gadget surpreende também pela sua cinematografia e a utilização de técnicas que tanto associamos à sétima arte, mas sem nunca perder a sua identidade enquanto videojogo, algo que é salientado pela presença de ângulos fixos e estilizados. A utilização de planos amplos, mas também a sua irreverência em desafiar a harmonia da composição dos planos, com personagens que são posicionadas nos cantos de cada imagem – cortadas e apenas visíveis de forma incompleta, para depois surgirem no centro dos planos quando ativamos uma sequência de diálogo –, demonstram como a Synergy Inc. procurava criar uma linguagem visual que permitisse aos jogadores navegarem pelos cenários de Gadget sem perderem qualquer elemento interativo.

Existem vários momentos em que Gadget utiliza este casamento entre cinema e videojogos para construir uma linguagem familiar para qualquer espetador. Temos, por exemplo, a utilização de dissolve e jump cuts, que desafiam a ideia de tempo no jogo, com grandes saltos espaciais e temporais a acontecerem entre sequências. O primeiro momento em que sentimos que Gadget é um jogo especial acontece exatamente num destes cortes, quando recebemos o bilhete para o comboio, com o jogo a passar a ação da receção do hotel para a estação ferroviária. Outro momento é a brincadeira que a Synergy faz com a profundidade de campo, onde aproximamo-nos lentamente de um revisor a cada clique, até que ele está mesmo à nossa frente. E se quiserem outro exemplo, temos também a transição para o Museu da Ciência, que é feita através de um vídeo de introdução na estação de comboios, onde passamos de estar a ver o que parece ser um vídeo promocional para estarmos já na entrada do museu.
É fácil criticar a progressão de Gadget quando olhamos apenas para a sua estrutura. A campanha move-se automaticamente entre longas viagens de comboio, limitadas à narrativa, com a ação a decorrer entre paragens nas mais variadas estações de comboio. No entanto, sinto que é nesta repetição que se encontra a magia de Gadget, novamente enaltecida pela sua direção de arte, mas também pela banda sonora. É suposto explorarmos o mundo de Gadget e é suposto pararmos para apreciarmos o que nos rodeia. Uma grade fechada nunca é apenas uma grade fechada. O plano foi meticulosamente pensado e desenhado, e a banda sonora interliga tudo ao criar uma ambiência desconfortável e abstrata no jogo. Quase parece field recording, feita por recortes de locais reais, mas editados para se assemelharem a algo e ao mesmo tempo a nada em concreto, criando assim um efeito perturbador e memorável.
Gadget é um jogo sobre o espaço físico e a sua composição do que propriamente as suas personagens, que se comportam de uma forma pouco humana, mais fria, menos natural ou sincera. Existem planos e formas de transição onde temos zonas sem nada para interagirmos, seja ativar algo no cenário ou encontrarmos um ponto de deslocação, apenas estão lá para absorvermos o seu vazio e decoração; sejam colunas de mármore de uma enorme estrutura, máquinas antigas num museu ou apenas um enorme deserto.

A desorientação, que surge ao longo da campanha, é propositada e está também presente na narrativa de Gadget. Nada é o que parece no mundo de Gadget. O que começa por ser uma simples história de espionagem acaba por ser uma análise sobre destino, livre arbítrio e individualidade – ou talvez não seja sobre nenhum desses temas. Se a nossa missão começa por investigarmos o cientista Horselover, considerado como um louco pelas pessoas que nos contrataram – e uma possível referência a Philip K. Dick e ao livro Valis –, rapidamente a perspetiva é colocada em causa e somos levados a crer que ninguém está a contar a história completa. Cada personagem conta uma versão contraditória dos acontecimentos, inimigos afinal são amigos e a nossa missão é encaminhada quase como uma simulação. Será Horselover um cientista louco? E o que é a máquina Sensorama? Talvez existam respostas, talvez elas não importem.
A Synergy Inc. foi fundada em 1986, há 36 anos, e lançou 13 videojogos até desaparecer em 1997. Apesar de estar afastada do palco mundial, a Synergy Inc. influenciou e evoluiu o género tal como Myst, ainda hoje considerado como uma mudança de paradigma no PC, experimentando com uma abordagem mais narrativa e cinematográfica. Os 13 videojogos que produziu foram lançados em plataformas como o Mac, PC, SEGA Saturn, PlayStation, 3DO e até na Apple Pippin. Mesmo com este pedigree, que inclui uma colaboração com David Lynch – que foi, infelizmente, cancelada –, a Synergy Inc.quase desapareceu da história dos videojogos. Fora o relançamento de Gadget para iOS, em 2011 – que, já agora, também já foi descatalogado –, os seus jogos estão perdidos algures em versões físicas em casas de jogadores que podem ou não ainda recordar-se do que está no seu sótão. Se não fosse por um vídeo de YouTube, eu nunca teria jogado Gadget ou sabido da existência da Synergy Inc. A culpa, em parte, é minha. Falta-me conhecimento sobre muitos aspetos e fases da história dos videojogos. No entanto, como poderá uma indústria avançar se os seus videojogos são facilmente perdidos pelo tempo, até na era digital? Uma resposta que será constantemente desvalorizada ou relegada para o futuro – agora resta saber que futuro é esse e quando chegará.
Joguem Gadget: Invention, Travel, & Adventure ou Gadget: Past as Future.