Inferno: o peso dos videojogos na manifestação desse “mundo”

Por: Francisco Isaac

“As portas do Inferno estão abertas noite e dia; suave a sua descida, e fácil o seu caminho: mas para retornar, e voltar a ver os céus, é aqui que está a prova maior”

A citação disposta acima provém da Eneida, obra magna do séc. I A.C. da autoria do poeta romano Vírgilo, e que fala da descida de Eneias (mitológico herói troiano que viria a se estabelecer, alegadamente, na região da actual Roma) ao Averno, ou, se quisermos, o sub-mundo onde estavam os espíritos dos defuntos que se encaminhavam para o processo de renovação das suas almas.

A concepção de submundo do universo pré-clássico (Sumérios, Hititas, Babilónios, Egipcios, Cananeus, etc) e clássico (Grécia e Roma, principalmente) sofreu profundas distorções ou apropriações pelo cristianismo, que transformou essa região solene,  de descanso e purificação, num local aterrorizante, de punição dos pecadores e onde o desespero era lei e regra – transitando os campos elísios para o paraíso cristão.

O Avernos ou Inferos (que simplesimente significa em latim, “sub-mundo”) “ganhou” uma conotação pesada e crítica, e que viria a moldar o pensamento de todas as culturas influenciadas pelo cristianismo, chegando-nos até à actualidade.

Do detective Constantine a DOOM Eternal, de Darksiders 2 a Dante’s Inferno, o inferno conceptualizado pelo homem cristão, injectou no mundo dos vídeojogos uma palete de possibilidades sem fim e que tem sido imagem de marca nesta indústria.

Tudo isto para dizer que: os videojogos também são eles um veículo de transmissão cultural importante, com imagens, ideias e conceitos que têm vindo a ser passados de geração em geração, atingindo assim a outro palco e difusão.

The Only thing they fear… is you (Doom Eternal)

Os recentes DOOM, seja o de 2016 ou o recente Eternal, trouxeram efectivamente o Inferno para o centro da acção, arremessando os seus demónios e seres na direcção da humanidade, com um twist deliciosamente articulado… de que este mundo infernal não estava debaixo do solo, mas sim nos céus, num planeta longíquo qualquer, à espera do momento oportuno – curiosamente, a ideia inicial cristã do inferos, é que este estaria abaixo da Corte Celestial, escondido na abóboda celeste, sendo, portanto, acima do solo terrestre.

A direcção artística não só dos seres que habitam esse planeta, mas de todos os cenários, regiões e lore envolvente, permitiu à Id Software dar um passo decididamente em frente no trazer do Inferno para outro patamar, transmitindo uma imagética que faria corar a maioria dos pergaminhos monásticos da Idade Medieval ou Moderna.

Sem entrarmos pelo guião de qualquer destas novas entradas no univero de DOOM, a ideia central passa por aquilo que é repetido na Bíblia: de que os habitantes do Inferno, ou Jekkad (o nome oficial desse planeta revelado em Eternal), procuram consumir e torturar as almas dos habitantes do pequeno planeta azul Via Láctea, transformando-as em energia.

E notar que diversos demónios estão caracterizados da mesma forma que em filmes, comics, animés: cornos acentuados, uma figura disforme, e um cruzamento entre homem e animal. Esta ideia poderá ter vindo dos sátiros, um ser com forma humana possuindo cornos, patas e outros detalhes associados a um bode, que na tradição clássica tinham uma conotação positiva, sendo transformados como demónio pelo cristianismo, e repetido assim na cultura digital.

Sim, este texto parece excessivamente carregado de apontamentos históricos, que acabam, aparentemente, por ter pouca ou nenhuma importância, mas é o contrário. Pensem assim, a distorção cristã das antigas histórias, mitos e lendas dos cultos antecessores à religião que viria dominar uma parte considerável do planeta, acabou por influenciar o desenvolvimento de vários plots e de um certo storytelling que efectivamente arregimenta milhões de adeptos nos videojogos, sem falar no universo do cinema, comics e afins.

Se os DOOM oferecem uma perspectiva estrondosamente caótica, que se torna numa das receitas mais excitantes dos últimos 10 anos, seja pelo jogo em si, a música de Mick Gordon (que merecia mais respeito por parte da Bethesda, diga-se) ou pela narrativa desenhada, deixando, pelo caminho, de de ser um simples “shooter”, outros aproveitaram certos moldes já construídos para edificar uma infraestrutura demonizante ligeiramente diferente.

Falo claro de Dante’s Inferno, da Visceral Games, um “mundinho” aterrador e carregado de agonia, onde Dante, o protagonista, é forçado a descer à casa e reino de Lúcifer para resgatar a sua amada, Beatrice, que viu a sua alma arrastada para os círculos infernais devido aos pecados do seu prometido.

Abandonem a Esperança, todos aqueles que entrem aqui… (Divina Comédia)

A larga maioria dos apontamentos que encontramos nesta viagem imersiva são retirados da Divina Comédia de Dante Alighieri, autor italiano que construiu esta narrativa como forma de ataque, escárnio e crítica profunda a figuras importantes da sociedade florentina, e não só.

Foi com Alighieri que o inferno recebeu uma nova adição na sua construção metafísica e artística, com os nove círculos infernais, terminando num lago gelado profundo, onde o anjo caído teria edificado o seu trono – no último nível estão os traidores, e Lúcifer é considerado o maior traidor de Deus.

Do século XIV para o XXI, a viagem de Dante sofreu algumas reformulações quando a EA, pela mão da Visceral Games, pegou nesta obra e decidiu dar umas pinceladas da sua autoria neste quadro, construindo uma narrativa ligeiramente diferente, mas que respeitou a sua essência e estilo.

Vejamos… O poeta Virgílio está lá para nos acompanhar na conturbada queda até ao fundo, comunhando connosco a cada novo nível, descrevendo-os e deixando sempre avisos e alertas importantes. Nesta inferna caminhada, Dante encontra figuras históricas que também surgem na obra do poeta italiano, como Cleopatra e Marco António – lúxuria -, Átila – violência -, Tirésias – fraude -, entre outros. Em algumas destas célebres almas, o jogador é convidado a punir ou perdoar, cativando-nos a reflectir sobre actos do passado e a considerar a essência do pecado.

O desenho dos inimigos respeita e eleva as ideias de Dante Alighieri, desde os glutões (corpos excessivamente pesados, de ventre inchado e com uns dentes como cabeça), demónios alados, Cerberus, Centauros, Pagãos, e uma profunda enormidade de outros seres infernais.

A jogabilidade pode não ser perfeita, os combos apresentam alguns defeitos,  mas os detalhes sórdidos e grotescos, a essência perturbadora e intimidante, e a narrativa aterradora, são elementos supra positivos para considerar Dante’s Inferno como outro veículo da imagética do Inferos para os tempos actuais, e que merece carinho. A criação e desenho de cada nível é soberba, conseguindo trazer até nós a ideia que Dante construiu, incutindo o terror deste inferno monstruoso.

In this waking nightmare where all dreams come true (HellBlade: Senua’s Sacrifice)

Da batida metálica demolidora dos habitantes de Hell até à recriação digital da ode de Dante, existem outras interpretações do inferos que não bebem só da fonte (amarga) do cristianismo… já adivinharam de qual poderemos estar a falar? De Hellblade: Senua’s Sacrifice. O Inferos aqui passa para Hellheim, um dos nove (lá temos este número novamente a surgir…) mundos da mitologia nórdica, com o sofrimento a passar agora para Senua.

Como na viagem de Dante, Senua viaja até à terra da deusa Hella, na procura de salvar a alma do seu amado, atravessando um pantanal negro, onde as trevas perseguem-na constantemente até ao último acto. Este Hellheim é igualmente gelado, perturbador e escondido de qualquer luz ou esperança, subsistindo a dúvida se a concepção desta região terá sido influenciada, ou não, pelo cristianismo, uma vez que a documentação existente tem autoria de recém-convertidos a esta religião, como Snorri Sturluson (século XII-XIII, pai da Edda em Prosa, a maior fonte de mitologia nórdica).

Independentemente dessas aproximações ou apropriações, o inferno de Senua conquistou o público por trazer algo refrescante, com a experiência a ser, essencialmente, no espectro psiquíco, com o partir da 4ª parede a ser um factor crucial, procurando adicionar um sabor exótico e que faz desta experiência de descida a Hellheim ainda mais intíma.

Hellheim também faz-nos uma visita em God of War (2018), com a descrição a ser similar, sem atingir a dimensão da de Senua: gelado, com as almas de quem morreu uma morte não em combate ou salva pelas Valquírias, a ser guiada para um final atemorizante. Porém, esta imagem, como dissemos, foi possivelmente construída por Snorri Sturluson, e, curiosamente, ganhou eco nestes dois videojogos com olhares para a mitologia nórdica, quando existem outro tipo de fontes com uma descrição menos negativa.

Nestes três jogos que falámos, todos eles têm um elemento que partilham com a mesma força… a necessidade de ouvirmos as paredes a falar do seu sofrimento. Se é devido ao subconsciente dos criadores destes “mundos”, ou se é por meio de um propósito provocativo, a verdade é que as descrições narradas de cada um destes espaços abana com quem conduz as personagens, tentando ir buscar tremores e medos que foram colocados nos recantos da nossa mente desde pequenos, empurrando-nos para uma luta não só pela alma do/da protagonista, como pela nossa.

If you are going through hell, keep going (Winston Churchill)

A linguagem que carregamos desde quando ganhamos a habilidade de soletrar sílabas e palavras, vem carregada de história e memória, mesmo que uma parte tenha sido esquecida… Inferno ganhou a imagem de um mundo perturbador e de castigo, com a sua localização a estar debaixo dos nossos pés, quando, na sua origem clássica, inferno era inferos, uma simples designação para o submundo, onde se encontravam as almas penadas.

Se recuarmos até aos tempos dos Sumérios, Kur, o sub-mundo dessa antiga civilização, era um local em que as almas não tinham descanso, continuando uma vida de trabalhos num local escuro, frio e em que os alimentos era poeira. Porém, não se tratava de um local de castigo/salvação… era simplesmente um espaço. Poderá o cristianismo ter retirado certos elementos de Kur e distorcido este espaço para servir os seus propósitos?

Em relação ao inglês, hell poderá ter vindo de hellia com a influência do mundo de Hellheim/Hel e a deusa Hella poderão ter afectado essa ideia, até porque o paganismo foi encarado como uma heresia, iniciando séculos de perseguição, com diversas componentes desses antigos cultos a serem convertidos para diferentes fins.

E, agora, um fast forward para o presente. É impossível negar que os videojogos receberam as mesmas inspirações e transportam consigo a memória do passado, carregando as palavras e escritos de autores como Dante Alighieri ou Snorri Sturluson para este novo espectro, que até afecta jogos como Persona 5 Royal, com o tema dos pecados e da infâmia moral a surgir em todos os cantos e recantos da luta de Joker e os seus companheiros – Yaldabaoth, um dos bosses principais, é um antigo ser destrutivo e um “faslo-deus” em textos judaico-cristãos.

Senua combate os seus próprios demónios e tenta levar o jogador pela sua mão, querendo que ele também os encare; Doomguy esmaga e oblitera todos os seres que querem aniquilar com a vida, empoderando-nos com uma confiança e loucura inegavelmente embriagante, apesar de ser evidente a fragilidade dos restantes humanos; Dante tem de atravessar um mundo de pecados para pôr fim à sua própria perfídia, colocando-nos a pensar na nossa; Darksiders oferece-nos o armagedão (sabiam que tem esse nome, porque causa de um monte que existe em Israel, chamado de Megido), mostrando-nos o que seria o fim dos tempos em larga escala.

O inferno é uma das imagens mais poderosas do universo dos vídeojogos e da cultura artística, que nos tem sido montada e desmontada em diferentes jogos, forçando-nos a entrar na barca de Caronte e a abarçar os receios e medos que nos intoxicam o espírito desde o momento que nossa consciência “acorda”.

Pelo bem, ou mal, façamos a viagem com Doomguy ao som de Mick Gordon e aprendamos como se arrumam com hordas de demónios, a fim de estarmos preparados para combater os nossos próprios medos; ou, tentemos seguir o caminho de Senua, e entender e aceitar o processo de luto que nos assola desde o 1º dia que sentimos carinho por outro ser.

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