A passagem para uma perspetiva na primeira pessoa sempre estivera no destino de Resident Evil. Se são fãs, ou apenas curiosos, de certeza que conhecem as origens da série. Muito antes do primeiro título cimentar a experiência de terror de sobrevivência, a Capcom e a equipa de Shinji Mikami brincavam com a possibilidade de Resident Evil (ou Biohazard) ser um jogo na primeira pessoa. DOOM continuava a ser um fenómeno mundial e Mikami defendia que a perspetiva seria muito mais assustadora para o jogador, criando uma relação de proximidade com a Mansão Spencer e todos os monstros bioquímicos que se escondem nos seus corredores. O hardware limitou as ambições da Capcom e Resident Evil chegou às mãos dos fãs como o pináculo do terror na terceira pessoa. Mas a história não ficou por aqui.

Entre Resident Evil e Resident Evil VII: biohazard, a Capcom não abandonou o sonho de transportar a série para a primeira pessoa. Esta transformação tinha de acontecer, assim estava destinado, e se não fosse na série principal, seria através dos inúmeros spin-offs que recebemos ao longo de quase três décadas de existência. A primeira tentativa não tardou a chegar, com Resident Evil: Survivor – ou Gun Survivor, como é conhecido no Japão – a estrear-se na PlayStation em 2000. Este é o início de uma das séries spin-off mais curiosas da franquia Resident Evil e uma janela para a própria metodologia da Capcom, permitindo-nos analisar não só a sua determinação em reinventar a sua galinha dos ovos de ouros, mas também em expandir a sua atenção para fora do terror, ao ponto de abraçar uma jogabilidade e tonalidade mais arcade e comercial do que havia feito até então. E o resultado final é fascinante.
Resident Evil: Survivor é um início lógico para a série, um passo seguro em jeito de teste para os limites desta nova experiência. Com produção da Tose, Survivor procura emular a experiência da série através da perspetiva na primeira pessoa, apostando na combinação “exploração e combate”, tal como na gestão de recursos. A utilização de assets dos títulos anteriores dá a Survivor a aparência de um capítulo perdido da série principal ou um modo cancelado para uma das sequelas, mas a campanha esconde mais segredos. Não só temos a combinação entre os vários monstros icónicos da série, desde os zombies a Hunters e Lickers, como a campanha divide-se por vários caminhos alternativos. Em momentos específicos, podemos aceder a uma zona específica do jogo, invalidando as anteriores, de forma a construir uma campanha com alguma longevidade. Esta escolha procura colmatar a duração reduzida de Survivor, mas também a sua escolha mais polémica: a impossibilidade de gravarmos durante a campanha.

Nascem assim as raízes no formato arcade, com Survivor a apostar numa campanha que temos de completar de uma só vez. Podemos gravar após terminarmos a campanha ou quando somos derrotados, mas é impossível retomarmos o progresso a meio. É uma escolha peculiar quando temos em conta que Survivor procura aproximar-se o mais possível dos títulos anteriores, ao ponto de recriar a jogabilidade do género – ainda que sob um esquema de controlos mais próximo ao que vimos em King’s Field, da FromSoftware. Survivor surge como um meio-termo, um projeto com ideias interessantes, mas cujo potencial é incapaz de concretizar, pois o seu objetivo foi simples: “como seria Resident Evil na primeira pessoa e sem grandes meios de produção?” A resposta da Tose foi arriscar o menos possível e criar uma campanha familiar, ao ponto da jogabilidade só se diferenciar dos títulos anteriores pela nova perspetiva e a duração da campanha.
Depois de Survivor, a Capcom tinha de fazer uma escolha: ou apostava numa estrutura mais próxima aos títulos principais, que a levaria a ter de melhorar o que fizeram com o título de 2000, ou arriscava numa jogabilidade arcade e o mais longe possível da fórmula Resident Evil. Em 2001, a resposta chegou sob a forma de Resident Evil Survivor 2 – Code: Veronica, uma adaptação de Code: Veronica, mas também uma transformação completa da série. Survivor 2 pode ser considerado como a ovelha negra desta sub-série, um jogo mal planeado, rude, inconsistente e movido por uma jogabilidade capaz de assustar até os mais corajosos. Não posso considerar a versão Arcade nesta retrospetiva porque não tive a oportunidade de a jogar, mas posso concluir que a versão lançada nas consolas é uma desgraça – mas sempre munida de ideias interessantes.

Survivor 2 mantém a aposta numa perspetiva na primeira pessoa, mas abandona por completo a forma da série Resident Evil. Não temos acesso a uma campanha tradicional, mas sim a vários modos de jogo que procuram criar uma experiência mais variada e clássica. Arcade Mode é a nossa apresentação a Survivor 2, onde temos acesso a cinco níveis, cujo objetivos resumem-se à recolha de chaves para abrirmos a porta que nos dá acesso ao boss de cada nível. Esta estrutura é imutável ao longo da campanha, fora uma distração estratégica, e muito enervante, no nível quatro, onde temos de fugir de Nemesis. O vilão de Resident Evil 3 é, inexplicavelmente, o destaque deste jogo, funcionando como uma bomba contra-relógio para toda a experiência. Se a jogabilidade e o level design não fossem indicativos da natureza arcade de Survivor 2, a forma como o jogo coloca-nos numa corrida contra o tempo é a cereja no topo do bolo. Iniciamos todos os níveis com um limite de tempo e se não chegarmos ao boss antes do contador chegar ao fim, Nemesis entra no nível e persegue-nos até conseguirmos fugir. A melhor parte? Nemesis elimina-nos com um só toque.
Fora o contra-relógio, Survivor 2 aposta num sistema de vida – de outra forma não poderia garantir que nos roubava mais moedas nos salões de jogos – e na recolha de armas secundárias, como shotguns e a poderosa magnum. A sua estrutura arcade não é o problema, mas sim a jogabilidade. Claire e Steve, as duas personagens disponíveis, movimentam-se como verdadeiros tanques na primeira pessoa, com o L1 e R1 a rodarem a câmara. Este esquema de controlos não é intuitivo e a velocidade da rotação é tão lenta, nomeadamente quando comparada aos inimigos, que uma má decisão é o suficiente para perdermos parte da barra de energia. Os níveis são curtos e existe muito pouco para descobrir nas salas não obrigatórias, fora munições para as armas secundárias, uma decisão que abona a favor de Survivor 2: quanto mais rápida for a vossa experiência, melhor será. O que é irónico, pois Survivor 2 tem uma panóplia de modos que procuram aumentar a sua longevidade, como Dungeon Mode, que nos coloca a explorar uma masmorra procedural e dividida por vários níveis; e Roach Mode, onde temos de eliminar todas as baratas de uma sala antes que o tempo termine. Isto é muito real.
A série precisava de uma evolução e Dino Stalker, também conhecido como Gun Survivor 3, é um passo certo. Apesar de ser inspirado em Dino Crisis e não em Resident Evil, Dino Stalker pertence à sub-série e é um aglomerado dos dois títulos anteriores, seja na sua forma, como na jogabilidade. Dino Stalker é muito mais focado numa narrativa do que Survivor 2, seguindo a história de Mike Wired, um piloto da Segunda Guerra Mundial transportado para uma linha temporal diferente. A campanha é composta por níveis intercalados por cinemáticas que procuram contar esta história de viagens no tempo com dinossauros, aproximando-se estilisticamente do que vimos em Dino Crisis 2. Temos, portanto, uma combinação entre os níveis arcade de Survivor 2 e a narrativa contínua de Survivor, ainda que longe da estrutura que popularizou os jogos de terror de sobrevivência.

A jogabilidade também surge como um híbrido peculiar, no sentido em que Dino Stalker é tanto um on-rails shooter como um jogo de ação na primeira pessoa. A perspetiva mantém-se consistente do princípio ao fim, mas existem níveis onde podemos explorar os cenários à nossa volta, com a possibilidade de encontrarmos itens e armas novas – ainda que sempre em contra-relógio – e outros onde estamos presos num veículo, guiados do princípio ao fim. A combinação entre os dois estilos de jogo não é tão convidativa como poderia ser, com Dino Stalker a não chegar a um equilíbrio perfeito. Os níveis de exploração pecam em elementos decorativos e nos caminhos alternativos, e as secções on-rails afincam os desafios típicos do género, criando assim picos de dificuldade inesperados. Mas nem tudo é mau. A variedade de armas e balas, que podemos selecionar com os botões principais, criam oportunidades de combate interessantes, procurando dar-nos opções válidas para os vários tipos de dinossauros que encontramos. A aproximação ao estilo exagerado de Dino Crisis 2 também é um ponto positivo, ainda que dependa da vossa apreciação do desvio estilístico da sequela quando comparada ao título original.
Resident Evil: Dead Aim é o final perfeito para a sub-série Survivor, não porque se trata de um excelente jogo, mas, porque representa a determinação da Capcom em criar algo novo e assente na ação na primeira pessoa. Dead Aim, lançado em 2003, é o culminar de tudo o que vimos nos jogos anteriores. A campanha regressa aos moldes da série Resident Evil, mas ao contrário de Survivor, temos pontos de gravação – com uma das melhores músicas de Save Room da série -, criando assim uma experiência muito mais familiar. A ação decorre na primeira pessoa e o sistema de mira funciona como uma junção entre Survivor e Survivor 2, ainda que muito mais responsiva e intuitiva, no entanto, controlamos Bruce na terceira pessoa. Dead Aim procurou fazer uma separação inteligente entre exploração e combate através da alteração das perspetivas. Esta escolha nem sempre funciona, até porque torna a movimentação muito mais lenta – especialmente quando estamos em combate e queremos evitar ataques inimigos -, mas a verdade é que se trata do melhor modelo desta sub-série.

É preciso colocar esta sub-série em perspetiva e perceber os moldes da sua produção. A passagem para a primeira pessoa não se tratou apenas de uma mudança de perspetiva, mas sim da implementação de uma nova forma de jogar através de periféricos como o GunCon. À semelhança de Time Crisis ou de qualquer outro Light-Gun Shooter, a série Survivor foi concebida para ser jogada com uma das armas de plástico, que proporcionava um melhor sistema de mira, mas um controlo menos eficaz na movimentação da personagem. É por esse motivo que Survivor 2 abandonou por completo o formato de campanha e Dino Stalker ambicionou criar um híbrido entre os dois modelos. No entanto, Dead Aim abraçou os dois formatos e é isso que o torna no melhor exemplar desta experiência da Capcom. A jogabilidade continua a depender do GunCon, ou até de um rato ligado por USB, mas a movimentação é mais responsiva quando comparada aos jogos anteriores, e as alterações no ritmo da campanha – a progressão resume-se quase sempre a “encontra a chave, volta atrás” – complementam os problemas deste formato híbrido. É perfeito? Longe disso, mas é uma anomalia de design que é muito mais interessante de analisar do que jogar.
Resident Evil VII: biohazard é o produto de várias experiências na franquia, mas também fruto da geração em que foi produzido. Resident Evil Survivor e as suas sequelas são experiências peculiares que surgiram antes do boom de popularidade dos FPS nas consolas. Não existiam moldes concretos no que toca ao mapeamento dos controlos, mas existiam periféricos que eram capazes de emular a popular jogabilidade dos jogos arcade. A aposta nas light-guns faz todo o sentido quando colocada em perspetiva, mas também revela a curta longevidade deste modelo. A série Survivor estava destinada ao esquecimento, para sempre considerada como um artefacto devido às suas mecânicas, mas é cada vez mais um caso de estudo para compreendermos melhor a Capcom e a evolução de Resident Evil. A passagem para a primeira pessoa foi finalmente consumada com a nova geração, mas o passado não se esquece: até quando esse passado inclui Survivor 2 – Code: Veronica.