Ao contrário do cinema e das restantes artes, os videojogos não vivem do culto do artista — não da mesma forma. Não associamos a criação de videojogos a esforços individuais, a projetos pessoais — excluindo algumas criações independentes —, mas sim a equipas, às vezes de centenas de profissionais, que moldam milimetricamente os videojogos que recebemos anualmente. Existe um diretor, um produtor e até um guionista, ou narrative designer, mas raramente associamos uma experiência de videojogo a uma só pessoa. Temos Hideo Kojima, Goichi Suda, Hidetaka Suehiro, Gabe Newell, Richard Garriott e Amy Hennig, mas não são nomes presentes no discurso diário e cuja popularidade é capaz de suplantar quaisquer barreiras ao ponto de serem sonantes para maioria dos jogadores.
Esta ausência de autores, de forças motoras e de visões unificadas é incontornável na indústria dos videojogos. Até certo ponto, acredito que seja o que a torna diferente dos restantes setores do entretenimento, esta ideia de coletividade que dá vida a um projeto em prol de algo maior. Para todos os efeitos, existem as produtoras. Existem também as distribuidoras e as editoras. Estes são, pela mais rude definição do meio, os autores que o público segue. O público não procura o que Tetsuya Nomura criará a seguir, mas sim qual será o próximo projeto da Square-Enix, tal como ficará contente com o anúncio do novo Assassin’s Creed, mesmo que o seu criador, Patrice Désilets, tenha abandonado a Ubisoft há mais de dez anos.
Esta proximidade às marcas torna-se ainda mais peculiar quando equacionamos que as equipas raramente são as mesmas. Na indústria dos videojogos, vive-se muito de freelancing, de equipas rotativas, algumas delas que nem acompanham o projeto até ao final da produção. No entanto, continuamos a aguardar as sequelas e as criações destas equipas hipotéticas. Associamos a marca a esta ideia de autor, tal como no cinema ou no teatro, onde uma voz move as outras. É aqui que nascem mitos como a “magia” da Bioware ou o quão intocável é a Blizzard no que toca a certos géneros: ambos estúdios que perderam a maioria, senão todo, o seu talento nos últimos anos. Estão não são as mesmas produtoras que criaram Mass Effect e Warcraft. São outra coisa.

Não se trata de desvalorizar o trabalho das equipas atuais, mas sim perceber porque continuamos a idolatrar produtoras que só existem em nome (e, no máximo, filosofias de design). Será uma necessidade em personificar algo sem cara? Ou apenas uma tentativa de aproximar os videojogos às restantes artes, onde o culto do autor continua a ser o centro da sua expressão? Também existe uma falta de compreensão sobre o funcionamento da indústria dos videojogos, um fator que devemos equacionar se pensarmos no quão escassas são as informações para um jogador menos atento. É mais fácil pensar que uma série rege-se por uma visão unificada do que perceber que muitas vezes essa mesma série pode ser dividida por várias equipas em simultâneo. São conceitos alienígenas que preferimos que estejam o mais longe possível dos grandes consumidores, como se fosse suposto manter a ilusão viva.
Mas criam-se erroneamente expetativas e aqui posso englobar a maioria dos jogadores, jornalistas e críticos. Apesar de termos consciência que as equipas mudam, continuamos a acreditar no culto deste autor inexistente, e cremos que a presença de membros originais é o suficiente para levar a bom porto as novas iterações das nossas séries favoritas. Não preciso recuar muito no tempo para me rever neste pensamento e basta olhar para a série Silent Hill e para a presença de Akira Yamaoka, como compositor e produtor nos títulos produzidos por equipas ocidentais, numa época em que a Team Silent já não existia. Como Yamaoka continuava na equipa, existia a vã crença que tudo ia ficar bem. Sinto que o mesmo continua a acontecer em relação a outras produtoras e basta ver a esperança num regresso da Bioware ou o entusiasmo que sentimos quando vemos o logótipo da Square-Enix num novo RPG. Mas, um dia, Tetsuya Nomura já não estará na equipa, tal como Hironobu Sakaguchi e Hajime Tabata já não estão. E como será a From Software sem Hidetaka Miyazaki?
Muitas vezes confundimos produção com direção, até quando não falamos em novas equipas. Podemos olhar para os títulos da PlatinumGames e considerar que Hideki Kamiya continua a liderar a direção da maioria dos projetos quando é falso. Kamiya dirigiu Bayonetta, em 2009, e The Wonderful 101 em 2013. Estes são os seus últimos projetos. Podemos também olhar para a carreira de Goichi Suda, ou Suda 51, e considerar os projetos que realizou na Grasshopper Manufacture, existindo um enorme salto entre Killer is Dead, de 2013, e o regresso de No More Heroes e Travis Touchdown em 2019. É um caso curioso de associação, onde colmatamos a ideia de marca e de legado com a necessidade de pensarmos em diretores, artistas e criativos específicos. Resumindo: autores.

Esta criação de autores é contraditória em vários níveis. Não só porque descentraliza a atenção dada aos restantes profissionais, tal como no cinema, em que todos são eclipsados pelo realizador e o produtor, mas também porque os jogadores não são assim tão apologistas da ideia de um autor liderar as suas séries favoritas. A presença das marcas e das produtoras é demasiado forte, imperativa, mas o culto de criativos e autores parece assustar uma grande fatia de jogadores. Talvez não seja o melhor exemplo, mas basta olhar para o desdém e a desconfiança com que um grupo de jogadores assistiu ao lançamento de Death Stranding, de Hideo Kojima. A verve atingiu um ponto em que os jogadores desconfiaram das notas dadas pela crítica porque não conseguiam associar a jogabilidade à receção, concluindo que tal só acontecia porque se tratava de Kojima. Num caso mais extremo, temos o lançamento de The Last of Us Part II, onde os fãs do original viraram-se contra a Naughty Dog e procuraram um alvo específico, neste caso, Neil Druckmann, culpando-o especificamente pelas escolhas artísticas da sequela.
Depreendo que existem duas possibilidades para esta questão: ou os jogadores sentem que a marca substitui o autor, numa representação muito crua da morte do autor (Roland Barthes), ou então existe a perceção que o autor está sempre presente, mas cujo nome nunca está em primeiro plano. Seja qual for a resposta, a comunidade cria expetativas que não são realistas, não só pela evolução criativa de uma produtora e de uma série, mas também pela alteração das equipas e dos seus criativos. Pode ser um choque entre falta de informação e uma crença tremenda no ideal dos jogadores, tal como um medo pela mudança ou até uma aversão à ideia de um artista numa indústria que é, para o bem e para o mal, percecionada como “de jogadores para jogadores”.
Talvez seja uma forma cínica de analisar a indústria dos videojogos e não quero, de todo, colocar de parte as novas equipas que se esforçam para dar continuidade a séries que apenas herdaram. Na verdade, é em seu nome que falo, pois, sinto que temos de controlar a nossa antecipação e ansiedade. É preciso compreender que as séries continuam, com ou sem os seus criadores, algo que também acontece no cinema, onde novos criativos trarão a sua visão singular para os projetos que têm de liderar. Não é suposto criarem-se expetativas através do legado dos outros. A Bioware já não existe, mas, contraditoriamente, ainda existe. É outra. Não tem os génios de ontem e muito menos é movida pela mesma visão que nos trouxe Baldur’s Gate e Dragon Age. Os génios são outros, ainda sem nome, mas que espero que não fiquem para sempre nas sombras. Que as equipas se valorizem mais sem o manto e peso dos nomes que herdam. Fecho com várias perguntas: precisará a indústria de videojogos de autores, de realizadores de cinema, ou de uma maior colaboração entre criativos? Ou serão os videojogos que dão vida ao conceito de autoria nos videojogos? A resposta é vossa.