A discussão em torno da emulação e da pirataria nos videojogos é um tópico sensível na indústria. Com o lançamento de Metroid Dread, e o consequente artigo do Kotaku — onde foi noticiado que o exclusivo da Nintendo já fora pirateado no PC —, percebemos como este tema será interminavelmente contemporâneo, no sentido em que parece ser impossível chegar a um consenso. Se um grupo defende que a pirataria e a emulação são uma porta de entrada para a preservação dos videojogos atualmente descontinuados, defendendo-se que a maioria dos estúdios utiliza, de facto, emuladores para os seus relançamentos oficiais; já a outra fação indica que a prática é cancerígena, criando a desculpa para o término de séries populares, mas vítimas de insucessos comerciais — como no caso de Metroid —, e para o aumento do preço dos videojogos. E com a chegada da era digital, onde tudo deveria estar disponível e à distância de um clique, a discussão agrava-se.
O tópico da preservação é um dos mais importantes e interessantes na atualidade, especialmente se tivermos em conta que não existem esforços realistas para atingirmos este futuro cada vez mais utópico onde todos os catálogos estão disponíveis. Se existem entraves à disponibilidade de videojogos com mais de 30 anos, às vezes até com menos, então a minha opinião será sempre imutável: sou contra as práticas que impossibilitam os jogadores de terem acesso a videojogos. Se equacionarmos os projetos que nasceram fruto de influências de videojogos descontinuados, chegaríamos à conclusão que a indústria seria muito diferente se não existisse emulação ou pirataria destes objetos artísticos. O que seria do género metroidvania se, por acaso, Super Metroid não estivesse disponível em formato ROM anos antes de qualquer um dos seus relançamentos nas lojas digitais da Nintendo?

É difícil defender a pirataria quando aplicada a videojogos acabados de lançar, mas é muito fácil compreender as suas vantagens se nos focarmos nos videojogos que não estão, de facto, disponíveis de forma legal. Qual será a alternativa? Não jogar? Abandonar por completo catálogos de consolas descontinuadas décadas antes e que se encontram agora esquecidas? Este foi um problema que o cinema teve de abordar rapidamente com o deterioramento das películas e do material utilizado para a sua revelação, que levou não só a uma maior preservação, mas também à alteração dos formatos e do processo químico que impossibilitava a projeção de filmes mais antigos. Nos videojogos, tudo piora. Apesar do formato digital, os assets e versões GOLD perdem-se com facilidade. São ficheiros e espaço de armazenamento em computadores de trabalhos, necessários para desenvolver o próximo projeto de um estúdio como a Square-Enix ou a Ubisoft. Nos anos 90, por exemplo, ninguém pensava em preservar os seus projetos. Os projetos eram apenas isso, “projetos”, no sentido em que o futuro ainda não tinha chegado para determinar que eram objetos merecedores de preservação. Foi o que levou, por exemplo, ao desaparecimento de décadas de Final Fantasy VIII, incapacitado de receber a tão aguardada remasterização porque a versão final já não existia em formato físico ou digital.
Mas a comunidade é perseverante, o que é o aspeto mais irónico deste debate entre emulação, pirataria e preservação no mundo dos videojogos. É difícil chegar a uma resposta clara, mas a minha opinião é bastante direta: se a preservação está em risco, a emulação é o futuro. E sinto cada vez mais a sua importância. Não só por ter o gosto de revisitar clássicos da minha juventude sempre que queira, mas também porque existe uma comunidade a fazer um trabalho exímio de reconstrução e melhoramento destes videojogos presos no passado. Tal como o André falou sobre a arte da tradução realizada por fãs, apontando vários projetos que ficaram presos no Oriente e sem uma versão inglesa, quero chamar a atenção para quem desconstrói estes videojogos e procura resolver os seus problemas para criar uma versão mais estável ou até mais moderna face à original. O que poderá ser considerado uma blasfémia para os puristas e defensores do cansativo “se não for jogado na consola não é o mesmo jogo”, é uma janela interessante e até empolgante para a problemática da preservação, mas também para o legado de certos videojogos.
Basta olhar para sites como RomHacking para percebermos o grau de dedicação destes programadores e designers. Uma passagem pela página principal e podemos compreender como existe um trabalho de aprimoramento, mas também de respeito por estes clássicos perdidos. Este hacking, como é apelidado — na verdade, determino que seja o equivalente ao restauro de obras de arte, mas quem sou eu para definir processos desta natureza —, é tão meticuloso que pode ser composto por melhorias visuais, como a inserção de efeitos cortados — ou agora reinseridos sem as limitações do hardware original —, a implementação de mecânicas cortadas ou a aposta em novos sistemas que expandem a experiência original, tornando-a não só acessível, como mais sólida e moderna. Neste momento, não é apenas a tradução que está em causa, mas sim a possibilidade de termos versões jogáveis de videojogos lançados com problemas de desempenho e otimização. Olhem para DOOM, na SEGA 32X, que está a ser restaurado e melhorado por uma equipa dedicada de modders e hackers. Este poderá ser o futuro.
Não podemos, no entanto, confundir a preservação de videojogos com os interesses de um estúdio e não devemos contra-argumentar as vantagens desta prática de restauro ao indicarmos que os donos dos IP têm a última palavra, pois os estúdios fazem o mesmo: só não apelidam a prática como hacking, mas sim de relançamento ou remasterização. O que encontramos no site RomHacking são transformações, traduções aprimoradas — como no caso dos RPG, que chegavam ao Ocidente repletos de erros e de tradução mal interpretadas — e novas experiências para uma nova realidade e um novo público. Mas olhemos, por exemplo, para Castlevania Advance Collection, uma nova coletânea que reúne três clássicos do Game Boy Advance, anteriormente disponíveis na Virtual Console — nas suas versões originais, algo discutível, claro, pois foram apresentados em resoluções diferentes —, mas que aqui surgem com melhorias de qualidade de vida. Nesta coleção, o jogador pode gravar em qualquer parte, algo impossível nos originais, mas também rebobinar e voltar atrás. Existe também a possibilidade de colocarmos a imagem em diferentes resoluções — como nos novos emuladores da Nintendo Online — e trocar rapidamente entre os três jogos. Este é o futuro. Aliás, este é o passado, pois é exatamente o que os emuladores permitem fazer desde o início.

A preservação será sempre um problema enquanto a emulação e a pirataria forem considerados como um, especialmente quando falamos de videojogos indisponíveis a nível comercial. Não só é absolutamente necessário e urgente quebrarmos as barreiras que impossibilitam estes relançamentos, sejam de licenças ou de falta de vontade e de verbas, como temos de começar a compreender que a preservação não existe sem qualquer forma de emulação. Temos de apagar o estigma e compreender as suas vantagens. Para mim, o trabalho da comunidade do RomHacking é um passo certeiro para um futuro de preservação. Não só temos acesso a videojogos indisponíveis, como temos a possibilidade de jogar versões atualizadas e melhoradas. A preservação de videojogos e a sua apreciação prende-se ao hardware original, mas também às mudanças de formato, de periféricos e de filosofias de design que podem ser consideradas retrógradas atualmente — e existem múltiplos casos, até em clássicos, onde certas decisões eram reflexo da sua geração e não do que era mais indicado para o projeto em questão. Com as novas opções, podíamos chegar às gerações mais novas, já habituadas ao mundo em alta definição, e criar uma ponte eficaz entre o passado e o futuro. E relembro que estas funcionalidades sempre existiram nos emuladores, ao ponto de fazerem um melhor trabalho que os lançamentos oficiais, como a Nintendo Online e o catálogo da Nintendo 64 demonstraram recentemente. Com esta aposta, não ficaria ainda mais difícil de contra-argumentar a importância da preservação na nossa indústria?
Não será hoje que resolvemos esta problemática e muito menos será através de mim e da minha finita sabedoria, mas aproveito o tópico forte para chamar a atenção para aqueles que se dedicam verdadeiramente à preservação, mas também ao melhoramento dos videojogos esquecidos. Talvez não devêssemos ficar tão presos ao passado, especialmente agora que temos novas consolas que atingem os 4/8K, mas sem uma análise da história dos videojogos nunca conseguiremos fazer mais e melhor. Isto é um facto. Sem Metroid, não existiria Hollow Knight. Se Metroid não estivesse disponível de qualquer forma, Hollow Knight continuaria a não existir. A matemática é básica. Talvez não seja do interesse do público, mas penso que o ultrapassa. Desculpem citar Henry Ford, mas “se eu perguntasse às pessoas o que elas queriam, teriam respondido cavalos mais rápidos”. A preservação dos videojogos vai além disso. Sejam em que plataforma for. É uma pena pensarmos que a comunidade e os produtores independentes têm mais carinho e respeito pelo legado da nossa indústria do que o público e as editoras que os criaram — e tudo porque consideramos as palavras “emulação” e “pirataria” como tabus. E se quiserem defender as produtoras e a forma como gerem os seus catálogos, peço que olhem para casos como o relançamento da trilogia GTA, que veio substituir as versões anteriores. Afinal, o que é isto de preservação para os grandes estúdios? Não tenho resposta, mas se me perguntarem o que é a preservação para a comunidade de modding, é mais fácil: é tudo.