Deathloop | GLITCH REVIEW

Custa a acreditar que Prey foi lançado em 2017. Quatro anos depois, o título de ação e aventura, que podemos associar ao género Immersive Sim, continua a ser uma das gemas perdidas da oitava geração. Um jogo extenso, repleto de conteúdos e boas ideias que, no seguimento de uma interrupção da série Dishonored — motivada pelas vendas desapontantes da sequela e do spin-off Death of the Outsider —, caiu no colo de um público que não sabia o que fazer com a sua aposta na inventividade, na exploração e nas mecânicas RPG. Prey não era Dishonored, era algo mais, uma evolução da fórmula, mas também um afastamento da ação furtiva que popularizou a Arkane Studios junto a um público sedento por mais. Deathloop é uma nova afirmação desta Arkane disposta a arriscar.

Mais uma vez, Deathloop não é Dishonored. Apesar de partilhar algum do seu ADN, como uma vertente mais furtiva e a mesma aposta no assassinato de um leque de antagonistas, Deathloop é mais um desvio estratégico na carreira da Arkane. Até certo ponto, Deathloop é tudo o que não esperávamos que a Arkane fizesse, especialmente depois de Dishonored 2, mas as amarras foram quebradas e esta vontade em remar contra a maré trouxe-nos um videojogo assente na repetição, num loop temporal, onde, no papel de Colt, temos de descobrir mais sobre a ilha de Blackreef enquanto eliminamos os seus patronos e evitamos os ataques de Julianna, a nossa rival, que poderá ser controlada por outro jogador.

Como Colt, a nossa missão é a de interromper o loop temporal que afeta Blackreef. No final do dia, dividido por quatro fases distintas — que influenciam a disposição de inimigos, as oportunidades de pistas e outras descobertas em cada uma das suas zonas —, regressamos sempre à mesma praia. Se formos mortos antes do dia terminar, regressamos à praia. O loop não é apenas uma ferramenta narrativa, mas sim o centro mecânico de Deathloop: o seu coração. Para todos os efeitos, Deathloop é um híbrido entre jogo de ação e um roguelike, ainda que muito mais acessível e intuitivo do que a maioria dos títulos do género, no sentido em que cada partida é marcada pelo regresso ao ponto de partida, mas nunca de mãos vazias. Com o objetivo de eliminar os oito Visionários em 24 horas, Colt precisa de investigar a ilha, encontrar pistas, descobrir rotinas, relacionamentos entre personagens e perceber qual será a melhor hora para atacar cada um dos seus alvos. Entre tentativas, o nosso herói, que acordou sem memória, tem também a oportunidade de encontrar novas armas e habilidades que facilitam progressivamente as suas tentativas em chegar cada vez mais próximo do seu objetivo final, com o jogo a culminar num último dia onde terá a oportunidade de eliminar os seus alvos de uma só vez.

Não sabia o que esperar de Deathloop, mas temia que a repetição fosse contraproducente à excelente jogabilidade e design de níveis que acompanham sempre os projetos da Arkane Studios: não podia estar mais errado. Para a minha surpresa, Deathloop é muito mais estruturado do que antevia e apresenta uma lista de objetivos, que se expande à medida que descobrimos novas pistas e que nos guia através do dia enquanto nos embrenhamos nas várias zonas e melhoramos o nosso arsenal. Há sempre um objetivo para completar e a repetição diária motiva à descoberta de novos caminhos e atalhos à medida que nos habituamos não só à jogabilidade de Deathloop, mas também ao seu mundo. É possível libertarem-se desta estrutura rígida se quiserem uma experiência mais livre e focada na leitura dos cenários e das pistas dadas pelo jogo, mas gostei de ser guiado pela campanha porque os desafios surgiam através da minha abordagem aos problemas e não pela resolução de pequenos quebra-cabeças. O que é excelente, pois demonstra como Deathloop, apesar de alguns problemas, nunca perde a sua versatilidade e consegue casar vários tipos de jogadores e abordagens na sua jogabilidade assente na repetição.

Esta versatilidade seria impossível, na minha opinião, sem o design entusiasmante de Blackreef, que surge aqui como uma personagem, quase protagonista, desta aventura. Tal como a Arkane nos habituou, a cidade está repleta de caminhos alternativos, segredos e micro-histórias que podemos descobrir à medida que exploramos todos os seus recantos. A ilha divide-se por quatro zonas principais — Updaam, The Complex, Fristad Rock e Karl’s Bay —, todas elas com uma temática ligeiramente diferente, mas que se unem pela sua direção de arte exímia. A estilização dos cenários e das personagens, tal como os vídeos animados que interligam os momentos principais da campanha, criam um mundo vivo e convidativo, e sinto que, depois de várias horas em Deathloop, ainda não descobri todos os seus segredos.

As micro-histórias, que surge através de documentos e de mensagens espalhadas pelos cenários, adicionam novas camadas à narrativa do jogo e constroem o seu mundo tresloucado, mas também assustador e cómico.

Um exemplo prático. No início de cada zona temos dois caminhos distintos que dão origem a duas abordagens diferentes. Podemos ser mais discretos e manter-nos nos telhados de Updaam, como podemos explorar as suas habitações e encontrar condutas, cavernas, celeiros ou elevadores secretos que podem ser desbloqueados com a palavra-chave correta ou a ferramenta ideal. O número de oportunidades quadriplica quando equacionamos as quatro fases do dia. Em Deathloop, o dia está dividido em quatro partes: manhã, tarde, final da tarde e noite. Cada fase representa uma mudança real nas zonas, sejam mudanças climáticas, com a neve a cobrir os cenários, ou de padrões dos inimigos, construindo uma espécie de rotina não só para os vilões principais, como para os seus capangas. Isto significa que é importante atacar as zonas na hora certa para acedermos a pistas específicas e a novas oportunidades de ataque. É muito empolgante organizar o nosso plano de ataque e perceber como podemos unir as várias pontas soltas através do dia.

Deathloop está pensado para dar ao jogador esta ideia de liberdade total, mas sinto, ao contrário de Dishonored, que há um maior desequilíbrio em foco mecânico. Sinto que Deathloop quer forçar o jogador a partir para a ação e a explorar todas as suas mecânicas em vez de demorar o seu tempo e apostar numa abordagem mais furtiva. Digo isto porque o jogo apresenta constantemente melhorias, seja para as armas ou para Colt — sob a forma de “trinkets” —, mas também armadilhas, que podemos utilizar a nosso favor — como as turrets, que podemos controlar — e a aposta no loop temporal, o que significa que repetimos constantemente as mesmas sequências e que eliminamos sempre os mesmos inimigos. Pela minha experiência, e à medida que Colt ficava mais forte, fiquei também mais destemido e sinto que se perdeu alguma da magia inicial de Deathloop.

No entanto, há um contra-argumento para esta crítica: Julianna. Ao contrário de Colt, Julianna não quer quebrar o ciclo de recomeço de Blackreef e para tal, terá de eliminar diariamente o seu antigo colega. Não vou estragar a surpresa e explicar quem são estas personagens, mas Julianna funciona basicamente como uma invasora na vossa partida. Sem aviso, a assassina pode entrar no vosso jogo e caçar-vos. Julianna é, especialmente durante as primeiras horas, muito mais poderosa do que Colt e o confronto é narrativamente desigual para demonstrar que é necessária alguma precaução no mundo de Deathloop. Basta um deslize e Julianna saberá onde estão: e não demorará muito para vos eliminar.

O que devem saber é que Deathloop tem um dos melhores pontapés do género e nunca deixa de ser satisfatório atordoar e atirar inimigos pelos cenários. É o ADN de Dark Messiah of Might & Magic a destacar-se.

Talvez esteja a extrapolar o impacto de Julianna na jogabilidade, visto que a sua dificuldade irá depender se jogam contra o CPU ou contra um jogador, mas o conceito é interessante e funciona no design de Deathloop. Cria-se um verdadeiro jogo de gato e rato — peço desculpa pelo cliché — e é necessário prever o que o nosso adversário irá fazer, tal como preparar-nos para o pior com o armamento e habilidades certas. Os duelos são satisfatórios, podemos criar armadilhas, influenciar os NPC e tentar encurralar Colt enquanto o eliminamos à distância. Como Julianna só temos uma oportunidade para parar o progresso do nosso adversário.

Deathloop é um jogo em duas partes. A jogabilidade não muda por completo, mas sim o foco dos conflitos e a preparação da personagem. Com Julianna, temos acesso ao Hunter Rank, que afeta o tipo de habilidades e armas que temos à nossa disposição, tal como missões que podemos concluir para desbloquear mais opções de personalização e não só. Pelo UI, senti estar perante um título puramente online, com os loadouts a servirem um propósito ainda mais afincado na jogabilidade, visto que só temos uma tentativa para derrotar Colt.

No entanto, existem problemas. Se num primeiro contacto os conflitos contra Julianna são assustadores e empolgantes, a magia dissipa-se quando compreendemos que existe uma diferença abismal entre lutarmos contra a IA e um jogador. Julianna é pouco surpreendente sem o fator humano e torna-se num desafio rotineiro sem esse fator. Desta forma, nunca desliguei o modo online porque queria sentir esta tensão na jogabilidade e o risco em terminar uma missão sob o olhar opressivo de Julianna, tal como a possibilidade de perder todo o progresso se fosse eliminado, mas a aposta no fator humano irá sempre trazer alguns dissabores. Com o tempo, notamos que existem formas de quebrar os níveis, encontrar zonas de vantagem injustas e ainda a utilização de técnicas que invalidam por completo as mecânicas do jogo. Querem vencer em Deathloop? Escondam-se e ataquem com a catana. É infalível porque se trata de um ataque com execução. Uma pena.

A estética das décadas de 60 e 70 dão vida aos vídeos animados e aos cenários do jogo, construindo uma identidade visual tão familiar, como única.

Mas Deathloop nunca deixa de ser divertido. Com a campanha a posicionar-se entre um jogo de ação e aventura, e a estrutura assente na repetição de um roguelike, temos acesso a um leque de armas e habilidades que necessitamos de aprender e combinar para as ocasiões corretas. Não nos podemos esquecer que, como em qualquer outro roguelike, perdemos o nosso inventário quando somos eliminamos ou o dia recomeça. Sejam armas, habilidades, ferramentas, “trinkets” ou outras melhorias: tudo se perde. Isto motiva-nos, num primeiro instante, a experimentar com o armamento, a compreender a sua utilidade e o posicionamento no mapa antes de voltarmos ao ataque.

Como mencionei anteriormente, Deathloop é muito mais simpático e acessível do que a maioria dos roguelikes, e permite que guardem um número fixo de armas, habilidades e acessórios. Para tal, precisam de recolher Residuum ao explorarem os níveis ou quando derrotam um dos alvos, permitindo guardarem parte do armamento para vos acompanhar no próximo loop. No entanto, aconselho-vos a não se apegarem muito ao vosso inventário, pois Deathloop é um jogo que merece ser explorado e que exige que consigam combinar e conciliar o maior número de armas e habilidades possíveis. Não estão a construir um herói equilibrado, tal como num RPG, mas sim um assassino pronto para obstáculos muito bem definidos que requerem diferentes habilidades. A limitação de armas e habilidades por zona (três armas e duas habilidades), por exemplo, exige exatamente que saibam escolher e organizar melhor o vosso inventário para não estarem desprevenidos. Por isso, mesmo com a possibilidade de guardarem parte do inventário, preparem-se para trocar regularmente de armas e habituarem-se a novas formas de jogar.

Esta aposta na rotatividade nasce não só do recomeço constante da campanha, como também da variedade de armas e da sua raridade. Tal como um RPG, Deathloop apresenta armas com vários tipos de força, desde pistolas enferrujadas, que encravam regularmente, até espingardas de longo alcance com habilidades únicas. Muitas das armas especiais estão sob o controlo dos alvos principais e é necessário determinar se vale a pena arriscar tudo numa só arma ou em habilidade únicas. Como perdemos (quase) tudo sempre que recomeçamos, existe uma tensão real sempre que encontramos uma arma perfeita e somos obrigados a regressar à nossa base para termos a oportunidade de a guardar connosco.

O mesmo acontece com as Slabs, as habilidades especiais do jogo, que só passarão a ser nossas se terminarmos uma das quatro fases do dia. As habilidades não são as mais originais, especialmente para quem já jogou Dishonored, mas servem o seu propósito e conseguem oferecer inúmeras opções de personalização apesar de se apresentarem em número reduzido: menos é mais. O problema desta estrutura é que demonstra o quanto é fácil recairmos sobre armas e habilidades muito específicas. Uma contradição real no design de Deathloop. Por exemplo, a habilidade Shift, que funciona como Blink em Dishonored, é quase imprescindível e deixa-nos navegar rapidamente pelos mapas, tal como Aether, que nos deixa invisíveis durante alguns segundos. Com as melhorias, estas habilidades tornam-se ainda mais obrigatórias e é fácil descartar as outras quando começamos a dominar as mecânicas do jogo. Existem opções variadas e a possibilidade de ir mais além com a jogabilidade de Deathloop, mas muitas vezes iremos questionar se devemos ou não mudar de estratégia quando estamos tão focados em seguir pistas e em resolver os mistérios de Blackreef. Uma pergunta que irá depender da vossa resposta.

Existe também um desequilíbrio na dificuldade de Deathloop, especialmente na IA das personagens. Ao contrário de Dishonored e Prey, o primeiro contacto com o novo título da Arkane é demasiado acessível e estruturado, e existe um maior foco na ação que rapidamente nos transforma em autênticas máquinas de matar. A aposta na acessibilidade, que respeito totalmente, levou a Arkane a apostar num sistema de tentativas que corta alguma da tensão associada ao loop temporal em que Blackreef está presa. Isto porque temos duas tentativas, que funcionam como vidas, antes de voltarmos ao início do dia. Mesmo com a agressividade dos inimigos, que parece ser a única estratégia de uma IA limitada — atacar e não ter resguardo pela sua vida, ao ponto do seu cone de visão ser demasiado ineficaz —, é fácil mantermo-nos em ação e eliminar praticamente todos os inimigos numa só tentativa. A isto alia-se a possibilidade de recuperarmos o Residuum perdido entre mortes: outra vantagem. É uma dissonância que se cria quando parte da campanha é tão focada na recolha de pistas e na gestão de estratégias, mas é o suficiente para estragar a experiência com aquele que é um dos jogos mais divertidos de 2021.

Se adquiriram uma arma e a trocaram por outra em jogo, não se assustem. A arma voltará ao vosso inventário quando terminarem o dia.

Deathloop é uma verdadeira surpresa não pela sua qualidade, mas pela determinação da Arkane em reconstruir a fórmula que lhe trouxe tanta popularidade em 2012. Não é um jogo perfeito, o loop pode ser cansativo e é muito fácil quebrar a dificuldade desequilibrada da campanha, mas o foco em zonas concisas, mas densas, em diferentes fases do dia e numa batalha constante contra um adversário implacável, aliado aos elementos RPG e à jogabilidade limada, fazem de Deathloop num dos melhores lançamentos deste final de ano. Mais uma vitória para a Arkane.

A escala utilizada é de 1 a 10

Código cedido pela Ecoplay.

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