O meu problema com a narrativa lúdica

O ato de contar uma estória é-me natural. Com isto, não quero dizer que sou um excelente contador de estórias, um verdadeiro rei da narrativa, da estrutura e da criação de personagens memoráveis, mas adoro criar algo do zero e conduzir quem me ouve ou lê ao longo de uma viagem emocional, cómica ou até aterradora. Quando entrei na ESTC e comecei o meu curso de cinema, apercebi-me que a escrita era onde estava o meu amor pelo mundo cinematográfico, pelos guiões e pelas sessões de brainstorm a solo ou em equipa. Entrei a pensar que iria ser realizador e saí como guionista, onde o meu coração sempre esteve.

Este amor pela escrita passou para os videojogos e apesar de a minha experiência ser ainda rudimentar, sinto uma enorme vontade em explorar Narrative Design e escrever guiões para este meio. É um novo interesse que se alimenta há mais de um ano, mas apercebo-me que estou dividido. Sinto-me, aliás, como um falso moralista. Já o transmiti, ainda que indiretamente, através de textos e podcasts, mas vou agora verbalizar um receio que me mina há meses: evito cada vez mais a narrativa nos videojogos. Isto não faz sentido, certo? Claro que não e não é a verdade completa. Continuo a achar o processo de escrita desafiante e a ideia de desenvolvermos uma estória interativa é, para mim, o futuro da criação narrativa. Mas as estórias em si? Estão a aborrecer-me.

Ao nível de forma, estrutura e conteúdo, as novas narrativas não são, à primeira vista, problemáticas, antes pelo contrário: estão em mutação, em busca de uma identidade. Alguns estúdios arriscam constantemente, tentam expandir esta ideia de ludonarrativa para novos formatos e géneros sem nunca perder o foco na interatividade, no seu elemento-chave. É na relação entre jogador e videojogo que nasce esta nova narrativa, como gosto de a considerar, onde a estória e as personagens só vivem quando há, de facto, uma interação. É o jogador que escolhe aceitar o desafio de viver uma determinada estória e assumir um papel ativo. Existe também uma ideia de responsabilidade no papel do jogador, no sentido em que todas as ações são resultados das suas decisões e não só do videojogo, do produto, o que cria uma ligação emocional e psicológica que o cinema, ou qualquer outra arte, poderá não atingir. Esta é a magia dos videojogos.

O medo, quase ansiedade, que senti nestes últimos anos era difícil de identificar. Surgia como uma comichão sem origem, uma irritação intermitente que se transformava lentamente numa sensação de perda e de derrota. A ideia de ignorar vídeos e momentos narrativos é, na minha perspetiva, admitir que estou a desrespeitar uma área que admiro e que faz parte do meu quotidiano. Faltava uma origem, um porquê para esta mudança repentina na forma como experiencio um videojogo. Foi preciso sair de dentro de mim e expor o problema a um amigo, o caro Jacopo Wassermann*, para compreender o que me incomodava na atual produção de videojogos. Ao mostrar-lhe a versão mais recente deste texto – que já teve tantas iterações que foi quase para o lixo –, consegui finalmente decifrar que a uniformidade da ludonarrativa era o catalisador desta sensação de cansaço, que se traduzia numa falta de curiosidade e vontade em seguir as aventuras destas personagens virtuais. Era a constante proximidade ao cinema.

Mesmo com as limitações tecnológicas, o género RPG moldou-se e contou estórias capazes de subverter a própria ideia de Avatar ou do papel do jogador num videojogo. As ideias moviam as produções.

Na sua análise ao texto, Jacopo verbalizou o que ainda não conseguira fazer. Durante décadas, a indústria dos videojogos tentou progressivamente aproximar-se do cinema e das suas convenções narrativas, quase como um ideal. Se nos anos 80 as inspirações tinham origem na literatura, onde podemos identificar os RPG de Richard Garriott como claros exemplos, o foco rapidamente mudou para as produções cinematográficas, em especial de Hollywood (e dos Blockbusters), para a aposta no aparato visual e numa forma de contar estórias que era mais imediata e próxima do público. No entanto, a tecnologia não permitia esta união de formatos e, tal como o Jacopo identificou, criou-se uma linguagem ludonarrativa próxima desta indústria em crescimento que teve origem na experimentação e na descoberta de regras e sensibilidades exclusivas aos videojogos. Foi na tentativa de contornar as limitações tecnológicas que os produtores encontraram o veículo perfeito para construirem experiências únicas à indústria, onde a interatividade deu lugar ao papel do jogador no mundo lúdico e às suas escolhas, mas também às narrativas mais visuais, desprendidas de convenções e assentes na criatividade. Apesar de não existir uniformidade, criou-se uma linguagem que só associávamos aos videojogos (pensem, por exemplo, nos Immersive Sims, como Deus Ex), um conjunto de normas e estilos que eram impossíveis noutra arte.

Com a chegada da sétima geração de consolas, criou-se o ecossistema necessário para os videojogos darem o primeiro passo para uma linguagem mais cinematográfica: e foi isso que aconteceu. Esta aproximação entre meios trouxe-nos cinemáticas mais longas, com claras influências no que toca à sua direção, e até estruturas narrativas próximas de produções de grande orçamento e de séries de televisão, com alguns videojogos a simularem o formato de temporada nas suas campanhas. Este ideal cinematográfico parecia ser o futuro da ludonarrativa, agora com os pés assentes na arte que a inspirou, mas esta uniformidade foi uma espada de dois gumes. Se, por um lado, deu-nos narrativas mais estruturadas e com um trabalho de direção mais apurado, onde se destaca o trabalho de caracterização das personagens; por outro, a linha que dividia os videojogos do cinema foi apagada, no sentido em que é cada vez mais incomum encontrar narrativas que sejam clara e exclusivamente lúdicas. Nesta contextualização histórica, que surgiu do diálogo com Jacopo, apercebi-me que sinto falta das experiências, das ideias descabidas, cativantes e subversivas, mas cuja determinação as tornaram intemporais.

Isto explica, por exemplo, a minha falta de empatia com Ghost of Tsushima e a demanda de Jin. Apesar de compreender que poderá ser uma porta de entrada para a cinematografia japonesa, em especial do mestre Akira Kurosawa, a verdade é que pouco oferece de original. O título da Sucker Punch faz apenas um excelente trabalho de corta e cola de vários filmes clássicos, e sabe, verdade seja dita, como os interligar para contar uma estória coerente e capaz de proporcionar um impacto emocional em milhões de jogadores. Mas onde está a narrativa que o torna num videojogo e não num filme interativo? Nos colecionáveis? Nos pequenos momentos de visual storytelling? Custa-me a acreditar que esse seja o futuro da ludonarrativa: tudo o que é exterior a uma nova experiência para o jogador. Mas esta é a nova norma, este Cinema Interativo – cuja definição é, admito, muito injusta –, onde podemos incluir ainda títulos como Assassin’s Creed, Uncharted, The Last of Us e até Gears of War. São todos videojogos válidos e cujas experiências são marcantes – e destaco The Last of Us Part II exatamente por subverter a ludonarrativa ao retirar o poder de decisão aos jogadores –, mas as suas formas, estéticas, sensibilidades narrativas e composições dramáticas não oferecem propriamente nada de novo aos videojogos ou ao cinema. Esta é a dura realidade que tive de interiorizar nesta demanda pessoal.

A minha pergunta para ti, é: será que o problema é realmente a falta de qualidade artística dos recursos narrativos empregues nos videojogos? Será que é suficiente ter uma estrutura narrativa e diálogos de qualidade semelhante a de um bom filme para resolver esta questão? Eu suspeito que não. O Jacopo faz assim uma separação entre qualidade narrativa e forma/formato que acho interessante, no sentido em que as mesmas estórias, como a de Ghost of Tsushima, poderiam ser contadas através de outros focos, mecânicas e veículos narrativos que lhe dariam uma originalidade muito mais palpável. Não são as estórias em si que me cansam, mas sim a forma como são contadas: este é o segredo, a revelação. São os diálogos exageradamente longos e expositivos sem interatividade ou imaginação mecânica; são as personagens típicas e estereotipadas de heróis cinematográficos que entram muitas vezes em conflito com as decisões dos jogadores (a tão famigerada dissonância ludonarrativa); são os primeiros atos sem profundidade dramática, que são quase sempre descartáveis ou até inexistentes. E tudo isto porque forçamos nos videojogos este ideal cinematográfico que coletivamente decidimos como o mais correto para os videojogos. Mas esquecemos sempre (quando nos convém) que este é o meio que vive da interatividade e o único capaz de proporcionar aos jogadores uma experiência sem igual.

Há também uma certa cultura de excessos, no sentido em que um videojogo requer um trabalho mais extenso, e até intenso, de guião, que deve ser identificada. Um videojogo com 10 ou 30 horas terá centenas de páginas, senão mesmo milhares, onde não só são apresentados momentos-chave da campanha (ou plot points), como também diálogos, barks e descrições de itens e colecionáveis. Um guião para cinema terá uma média de 95 páginas. Este excesso nasce da necessidade em ocupar o jogador e em justificar o valor da aventura (e dos custos de produção) a um público que é simultaneamente tão exigente, como despreocupado. Isto cria nos guionistas uma urgência em envolver o jogador nas suas estórias e, consequentemente, uma descrença nas suas capacidades percetivas – e então surge a exposição desmedida (olhem para a escrita de Hideo Kojima). Uma linha de diálogo é sempre preferível ao silêncio ou a deixar o jogador chegar às suas conclusões: uma norma que me tem desgastado lentamente. As narrativas são expandidas artificialmente com novos pormenores e informações que poderão não fazer sentir no mundo que constroem, mas que, em último caso, ocupam espaço temporal no guião e nos momentos mortos. São resultados da aproximação ao ideal cinematográfico.

Para concluir a sua análise ao meu texto, o Jacopo relembrou-me de Rudolf Arnheim, o crítico de cinema alemão que repudiou a inclusão de banda sonora na sétima arte. Para Arnheim, a aparição do som foi como uma bastardização de um meio cuja magia baseava-se na aproximação a uma realidade imperfeita, indicando que o som retirava poder à imagem, ao ponto das salas de cinema perderem o seu encanto. A visão deste crítico, que acompanhou a indústria até 2007 – anos da sua morte – sem nunca mudar de opinião, pode ser dantesca, mas revela a beleza da imperfeição e da criatividade face a um entrave tecnológico. Não é a limitação que o atrai, mas sim o escape à realidade. A ausência de som tornava o cinema único. Regressando aos videojogos, podemos identificar a interatividade como o seu elemento diferenciador, único, seguido da experimentação, mas quando nos focamos na sua estrutura narrativa, percebemos que é (quase sempre) cinematográfica; não é sua. Cria-se, como Jacopo também identifica no parágrafo abaixo, uma crise. A mesma que sinto e que nunca consegui verbalizar corretamente.

Usando o mesmo exemplo, tens alguém como Arnheim que resolve ficar-se pelo cinema mudo. Esta escolha parece-nos um bocado absurda, porque a banda sonora faz parte de algo que assumimos próprio de uma obra cinematográfica. A ideia de que um filme possa ser mudo é algo que estamos mais ou menos dispostos a tolerar conforme a nossa curiosidade e conhecimento histórico do meio. Se alguém hoje em dia fizesse um filme mudo, seria rotulado instantaneamente como pastiche, ou experimental, mas, em dada altura, era simplesmente a norma, e encaixava num ambiente com as suas próprias práticas de consumo e produção (já agora, sobre este assunto, aconselho o filme Nickelodeon, de Peter Bogdanovich). É possível fazer o mesmo raciocínio em relação aos videojogos. O que nos parece um elemento estranho e alienígena poderá muito bem tornar-se o futuro do meio, como argumentas no fim do artigo. Tudo isto para dizer que a narrativa videolúdica pode estar a atravessar um momento de crise, cuja resolução poderá apontar o caminho para o futuro.

As críticas que teço a uma área que adoro são agridoces e até injustas, mas é impossível não exigir mais dos estúdios quando existem títulos como Disco Elysium a combinar o melhor da narrativa clássica com a liberdade dos jogadores.

Eu compreendo a contradição que nasce deste texto, especialmente depois de passar 2020 a escrever sobre guionismo e narrativa nos videojogos, mas temos de separar as águas. Se adoro o processo em si, que considero ser desafiante e recompensador, e se ainda consigo ser surpreso ocasionalmente por alguns videojogos (por favor, joguem Disco Elysium), quero sublinhar que o meu cansaço nasce de uma falta de originalidade e na ausência crescente de risco e de experiências narrativas. A indústria é tão abrangente, tão nova e criativa que sinto que tem de existir cada vez mais um afastamento ao cinema para subsistir no futuro. É preciso encontrar aquela que considero ser a futura linguagem da narrativa, o próximo passo no ato de contar uma estória, e para tal, a mimética tem de terminar. Sou um enorme defensor da academia, dos estudos analíticos e da pesquisa. Acredito também que existe na arte uma progressão e um sistema de influência e contracultura que construíram alguns dos maiores e mais marcantes movimentos artísticos da história da Humanidade. É preciso aprender para saber destruir – é nisto que acredito. Matem os vossos ídolos. Se os videojogos evoluíram com a missão de imitar o cinema – na sua estrutura clássica, de três ou cinco atos, na construção de personagens e protagonistas –, estão agora a caminhar para uma crise que, espero, dê origem a um recomeço. Este é o momento para pensar fora dos moldes convencionais e não descartar ideias.

Estamos num ponto de viragem, na entrada de uma nova geração, e tal como existem problemas na estrutura das campanhas e uma falta de evolução na jogabilidade e nas mecânicas – um problema que persiste há gerações –, também existem questões importantes que têm de ser resolvidas em Narrative Design. Afinal, qual é a voz dos videojogos? São as escolhas e a liberdade dos jogadores? É a aproximação ao cinema e a uma narrativa mais clássica e convencional? É a imitação? Ou não é nenhuma destas opções, mas sim algo ainda por descobrir? Na minha perspetiva, e apesar de adorar – em alguns casos – a beleza da simplicidade proporcionada pelas narrativas lineares, penso que o futuro está nas narrativas emergentes, livres e focadas nos jogadores. Por outras palavras, está nas mãos dos produtores independentes, que se regem para lá de orçamentos megalómanos e que são capazes de arriscar tudo por uma ideia que adorem, mesmo que para isso sejam obrigados a subverter géneros e formatos narrativos. Talvez um dia tudo isto seja uma não questão ou, como o Jacopo disse, a nova norma que nasce desta crise atual. Por agora, foi reconfortante libertar-me desta impressão e dar-lhe um nome. Uma coisa de cada vez.

*Jacopo Wassermann é Mestre em Estudos Cinematográficos e está inscrito no curso de doutoramento em Arte dos media da Universidade Lusófona, onde ensina Cultura Visual no curso de licenciatura em Videojogos.

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