Este é um texto difícil de verbalizar e cujas ideias não vou conseguir expor eficazmente nem problematizar na totalidade, porque enquanto o escrevo sinto uma enorme raiva a percorrer o meu corpo. Noutro cenário, diria a mim mesmo para me acalmar e respirar, deixar o tempo passar e centrar-me no tópico com outra perspetiva, mas a raiva, quando bem direcionada, tem o seu poder – tem a vindicação do seu lado. E é isso que me traz aqui hoje, a vindicação, a luta e a triste perceção que o mundo continua a piorar a cada dia que passa.
Numa nova reportagem do The Verge foi revelado que a Amazon, uma das empresas mais lucrativas do mundo – com Jeff Bezos a consagrar-se como um dos homens mais ricos da história em plena pandemia –, planeia expandir o seu sistema de recompensa, que é comparado a um ‘videojogo’, intitulado FC Games. De acordo com a reportagem, os trabalhadores da Amazon têm acesso a swag bucks, ou dinheiro/pontos virtuais, pela sua prestação nos armazéns, que poderão ser trocados por prémios, como garrafas de água e até algumas das novas consolas de videojogos. O objetivo parece ser o de tornar um trabalho execrável – mas que dá, ainda assim, alento a milhões de famílias por todo o mundo – numa pequena diversão, num videojogo.

Isto é assustador. Não sei se foi este o futuro que Aldous Huxley previu em Admirável Mundo Novo quando retorquiu que o futuro não seria controlado por fascismo e sim pelo princípio do prazer, mas é para onde caminhamos. Numa sociedade cada vez mais vidrada no ideal do imediato, do fugaz, da antecipação e das recompensas regulares cria-se o palco perfeito para a dissimulação do papel do trabalhador no grande retalho. Desenvolve-se, portanto, a noção perigosa que estas funções são, na verdade, positivas, pois existe uma recompensa constante para os esforços adicionais da força de trabalho. A adrenalina do reconhecimento e a fuga/recalcamento do real são realçadas através de prémios virtuais que se constroem na satisfação psicológica e num simples conceito: o de vencermos uma partida num videojogo.
Como crítico, detesto ver a união entre estas duas realidades: por um lado, os videojogos, o ato de jogar, uma ação quase sempre prazerosa onde existe um objetivo, uma meta, uma condição de vitória que mexe com os jogadores a um nível psicológico – onde existe, quase sempre, uma recompensa; por outro, temos o trabalho físico e mental em ambiente de armazém, a correria diária, os esforços hercúleos de trabalhadores esgotados que são controlados através de mensagens de texto que determinam o seu futuro. Os dois não podem ser combinados, mas é o que está a acontecer.
A ideia é simples: tornar o trabalho numa atividade divertida. Se o conceito é aliciante, na medida em que se tenta melhorar o ambiente de trabalho dos funcionários – e alguns dos trabalhadores da Amazon referem que estas atividades cortam alguma da monotonia das suas funções –, o seu objetivo e intenções finais são tudo menos aliciantes. A carga horária não vai diminuir, o volume de trabalho também não, mas a Amazon motiva – verbo perigoso – os seus empregados a trabalhar o dobro com a promessa de recompensas. Mais trabalho, mais pontos, mais artigos gratuitos. Mas esta ideia de gratuitidade é falsa: desculpem-me o cliché, mas tempo deveria ser sempre dinheiro.

Com o programa a ser implementado em mais 20 centros da Amazon, os trabalhadores continuam a ser empurrados para horários de trabalho mais exigentes e monótonos: este é o futuro. No entanto, isto não acontecerá, diretamente, por obrigação da Amazon, mas sim pelo próprio trabalhador, que quer ser recompensado, que quer aquela “nova consola” e manter o seu emprego: se os outros fazem, por que não irei fazer o mesmo? Este processo psicológico medonho, de que o trabalho é um videojogo, é atroz. A ideia de lazer e de prazer associadas a tarefas repetitivas, inseridas em ambientes opressivos, onde a pressão diária leva ao esgotamento dos seus funcionários, demonstra como a manipulação psicológica visa a quebra da barreira entre o real e o fictício. É a contínua promulgação de um ambiente lúdico, das suas regras e incentivos, num mercado que cada vez mais vê os trabalhadores como autómatos. Podia estar a falar das linhas de montagem do Ford ou da revolução industrial, mas, infelizmente, o cenário mantém-se: com a diferença de agora ser o prazer que nos controla.
Estes programas representam eficazmente a mentalidade destas grandes empresas e da forma como veem o mercado e o papel do trabalhador no futuro. Com a era digital, dos videojogos e das redes sociais, criou-se o cenário ideal para trocar horas de trabalho por recompensas virtuais, por pequenos prazeres ou reconhecimento interno nas empresas. De facto, existem tarefas, jogos e desafios diários que representam algumas das funções destes trabalhadores, como corridas contra o tempo, onde se registam os melhores percursos de cada ‘jogador’. No entanto, as recompensas não aumentam – até porque, como indica o The Verge, podem ser apenas simbólicas, representadas através de animais de estimação virtuais (como o Tamagotchi) –, mas a carga horária sim, mas sob disfarce. Se um videojogo é divertido, cria-se a ideia de que as horas adicionais também o serão. Os próprios trabalhadores poderão querer trabalhar mais horas para conseguirem a melhor pontuação ou um lugar na tabela dos melhores. Afinal, é tudo um jogo.
Na China, o Governo implementou uma aplicação social que determina o crédito de cada habitante. De acordo com alguns parâmetros pré-definidos, os habitantes são julgados pelas suas ações, criando-se assim um estado de vigilância permanente impulsionado por uma aplicação obrigatória que pode influenciar o futuro de cada cidadão. Com mau crédito pessoal, os cidadãos chineses podem perder oportunidades de emprego ou o direito a saírem do país. No entanto, de acordo com o Governo Chinês, a aplicação não é uma forma de controlo, mas sim um método de recompensa e de entreajuda entre cidadãos. É, portanto, um videojogo em larga escala com pontuações, recompensas e castigos (estados de derrota): um MMO É, dizem as más-línguas, uma motivação adicional para os cidadãos se comportarem e servirem de forma positiva a sua nação. Não há nenhuma intenção de controlo nesta aplicação – claro que não.

Talvez esteja a gritar para uma nuvem e o problema seja muito menor do que penso, mas só o facto de se ponderar a possibilidade de controlar trabalhadores através de jogos e de incentivos irreais, onde se utiliza uma linguagem mais próxima dos videojogos e das redes sociais, é, por si, uma derrota. Só o facto de alguém ter pensado e implementado algo semelhante é uma demonstração de que as grandes corporações não estão minimamente interessadas no bem-estar dos seus trabalhadores, mas sim no lucro das suas fábricas, armazéns, escritórios. Isto é sabido, assim funciona o mundo, mas há sempre uma certa ingenuidade que nos leva a pensar que ninguém dará o passo em direção ao abismo de livre vontade; e depois recordamo-nos que muitas das pessoas que fazem estas decisões não têm de dar qualquer passo – terão sempre alguém para comandar a fazê-lo. Este é um controlo mental e psicológico, é jogar com os sonhos e vontades de seres humanos – de pessoas de carne e osso, como eu e tu, caro leitor, que têm de trabalhar para sobreviver -, e é disfarçar o problema como um não-problema. Já tiro o papel de alumínio da cabeça, não se preocupem.
Resta agora perceber se a Amazon irá manter este novo sistema de recompensa e se, perante a sua expansão, os trabalhadores lutarão contra a sua obrigatoriedade. A ludificação, ou gamificação – isto é, a apropriação de técnicas utilizadas no design de videojogos fora do seu contexto –, revela o quanto é possível manipular o grande público. O design de videojogos tem uma componente psicológica muito forte e quase invisível, no sentido em que um produtor tem de prever e saber manipular o que um jogador poderá fazer dentro do seu videojogo – é suposto guiá-lo através do level design, da arte dos cenários e da narrativa. Nada é deixado ao acaso. Agora imaginem que estas mesmas técnicas, que visam – segundo as empresas – a satisfação e bem-estar dos seus empregados, são utilizadas para controlo e para subjugação ao incentivarem dissimuladamente a ideia de que as horas e a carga de trabalho adicionais são “divertidas”. Que a competição entre colegas de trabalho é natural e empolgante, no sentido em que conquistam lugares numa tabela de produtividade. As horas aumentam porque sentem que a recompensa está à sua espera. A diversão corta a monotonia que, por sua vez, diminui a noção de que estão há horas a repetir a mesma tarefa sem garantias de futuro. E imaginem que isto funciona.
Como disse anteriormente, talvez esteja a exagerar e a extrapolar uma decisão que poderá nem ser imitada, mas é assustador pensar como a ideia do que é um jogo (ou videojogo) pode ser transformada e moldada para cenários de controlo social. Se calhar sou ingénuo e a não tenho conhecimento que estas táticas, fora os exemplos apresentados, já existe no mercado de trabalho e que são praticadas há anos, mas a combinação entre trabalho, controlo e videojogos não é natural – não pode ser natural. Temos muito para aprender com o design de videojogos, com as técnicas dos produtores e na forma como encaminham um jogador através de horas de conteúdos e o recompensam. A psicologia está lá. O que não devemos aprender é como utilizar estas noções para criar nos cidadãos a ideia de que tudo é um jogo e que a realidade pode ser moldada à mercê de grandes instituições. É assustador pensar que somos constantemente motivados a realizar atos e atividades porque nos sentimos recompensados.
Que isto nos assuste e que estas notícias nos abram os olhos. Sejam jogadores, cineastas, trabalhadores de qualquer outro setor ou membros de direções de milhares de milhões: lutem pelo bem-estar daqueles que vos estão próximos.