Um susto perfeito | Project Zero 3: The Tormented

Quando falo de terror, existe um padrão. Acredito que este padrão é recente, talvez nascido com a idade, mas foi, ainda assim, um balde de água fria. Talvez já tenham reparado que sou uma pessoa negativa, do tipo que é incapaz de ponderar sobre um cenário em que algo não corre mal, mas não pensava em mim como alguém que se queixa constantemente – e, na verdade, sou exatamente essa pessoa. O género de terror é importante para mim e é um dos que mais saudades me dá. Sou exigente, admito, mas apenas porque conheço muito bem o seu potencial. Escrevi negativamente sobre The Medium, Amnesia Rebirth, entre outros, e até sobre o próprio género. Vamos mudar isso.

Vamos terminar com este negativismo e focar-nos num exemplo que considero ser muito eficaz no terror. Para tal, temos de regressar à PlayStation 2. Com isto, e antes que levantem as forquilhas, não quero dizer que o género morreu na sexta geração de consolas, mas sim que encontrei, ao revisitar um clássico, um momento genuíno de puro terror e de uma simplicidade e bom gosto que me recordaram do porquê de gostar tanto deste género. Foquemo-nos, então, em Project Zero 3: The Tormented.

Aquele momento em que as coisas se tornam demasiado reais.

O terceiro título da série, lançado em 2005, simbolizou uma mudança em vários sentidos. Para além de unir as estórias desta trilogia inesperada, contando com a presença de Miku e Mio, as protagonistas dos títulos anteriores, trouxe-nos uma campanha dividida por várias perspetivas e com um formato próximo de Silent Hill 4: The Room, permitindo ao jogador, entre sonhos, regressar à casa de Rei, a nossa personagem principal, e a um lugar supostamente seguro. A casa, que se divide por várias divisões, é totalmente explorável e apresenta novos elementos à medida que avançamos na campanha, como documentos, cassetes e até a possibilidade de revelarmos fotografias antigas. É um HUB, sim, mas é também um lar, um reflexo das personagens e da própria narrativa do jogo.

Foi a primeira vez que a série decidiu retirar os jogadores das suas mansões assombradas e amaldiçoadas, quebrando assim o ambiente tenso e aterrador dos títulos anteriores ao permitir que seja possível, de facto, parar e respirar antes de reentrarmos na Mansão do Sono. Seria, portanto, uma decisão estranha e algo contraproducente para a equipa se esta passagem para o mundo real fosse uma quebra acentuada no ambiente e tensão do jogo. Felizmente, e pela minha experiência com o jogo, tal não aconteceu. A comparação a Silent Hill 4 não é inocente e não se foca apenas no facto de termos um local seguro, uma casa, mas sim a transformação que esse ambiente sofre ao longo das duas campanhas. O que começa por ser um porto seguro transforma-se num reflexo das realidades à sua volta, à Silent Hill que jorra pelas fendas das paredes e à mansão onde habituam os fantasmas que assombram Miku e Rei.

O combate continua a ser focado na máquina fotográfica e nos encontros aproximados contra fantasmas.

A ideia de termos um local seguro é, infelizmente, desvalorizada. Tal como os estudos da narrativa nos ensinam, ensinamentos esses que transbordam para o Game Design (e o seu Flow/ritmo), é necessário deixar o espetador respirar e cortar a tensão para que possa, mais à frente, voltar a ser surpreendido. Se se mantiver a tensão, corremos o risco de cansar e perder o espetador, que se sente manipulado pela própria estória. As salas de repouso, popularizadas por Resident Evil, não são uma forma dos designers desculparem as estruturas repetitivas e labirínticas dos seus videojogos (que funcionam, como na série da Capcom, como checkpoints) e muito menos quebrar o realismo dos seus mundos (por que motivo um monstro não entra numa sala que é igual a tantas outras?), mas sim deixar o jogador respirar, reencontrar-se e preparar o seu próximo passo. Este momento é importante, é revigorante. Agora imaginem que ele desaparece. É isso que Project Zero 3: The Tormented faz.

Esta passagem de mundo normal para mundo especial é suave e a sua progressão é tão invisível, como bastante palpável. Os acontecimentos são espaçados, mas têm uma presença enorme e acompanham de uma forma exímia o que se passa na Mansão do Sonho. Conseguimos acreditar que existe uma maldição e que ela se espalha por toda a realidade de Rei, mesmo quando não está a sonhar. Isto é muito eficaz. Mas como pode algo ser invisível e palpável em simultâneo? É tudo uma questão de psicologia. As mudanças são lentas, mas estão sempre presentes. No entanto, a maioria das alterações irá escapar-nos até termos um primeiro contacto com um espetro e quando essa barreira se quebra, tudo se torna tão visível que sentimos que, afinal, sempre estiveram presentes. Passamos a ver o que está lá e o que não está, num estado quase de paranoia.

Existem vários acontecimentos ao longo da campanha e tenho a certeza que terão o vosso susto favorito, mas quero destacar um momento muito específico, aquele me que levou a escrever sobre Project Zero 3 e que me levará à sua recomendação final. Se leram a minha apreciação a The Black Iris, depreenderam que adoro surrealismo e ideias arriscadas. Gosto que os produtores brinquem com a realização e que criem ambientes que são imitações de algo real, mas que escondem em si algo mais nefasto e perturbador. No fundo, adoro o horror no mundano, na simplicidade, no silêncio e no suposto normal em que nos regemos, e é aquilo que Project Zero 3 se destacou.

Entre visitas à Mansão do Sonho, quando Rei já descobriu que mais pessoas são afetadas por sonhos estranhos e por uma estranha aparição repleta de tatuagens, o telefone toca. Rei está sozinha na sala, Miku, a sua companheira de casa, está resguardada no seu quarto, localizado no segundo andar. Depois de atender o telefone e de ler uma carta que lhe foi deixada, Rei pode regressar ao seu quarto e iniciar o próximo sonho. No entanto, entre estes acontecimentos, algo mudou. À primeira vista, podemos não notar que já não estamos sozinhos na sala, mas, aos poucos, a nossa visão percebe a mudança e vemos finalmente as pernas de uma figura translucida escondida numa cortina. Esta figura, cuja face não chegamos a ver, está quase ao nosso lado, mas faz também parte do cenário: está simplesmente ali, parada, não há um único som ou movimento que revele a sua presença. Mas está lá. E com a sua presença, vem a noção de que a casa de Rei mudou. Os sonhos são reais.

Este momento é seco, desconfortável e totalmente perdível se não estivermos com atenção, mas é um dos melhores sustos que podemos encontrar no cinema e nos videojogos. A ideia de sabermos que já não estamos sozinhos no nosso próprio lar é, por si só, assustadora, mas aqui, é um espetro que nos assombra. Uma entidade não natural que reside connosco e que está ali, parada e imutável, cujas intenções, devido à sua imobilidade, se tornam imprevisíveis. E tudo isto sem um único som ou diálogo, mas sim trabalho de mise-en-scène e realização. Perfeito.

Ainda não terminei Project Zero 3: The Tormented, mas recomendo a todos os fãs de terror. A série Project Zero é uma das mais assustadoras e perturbantes dos últimos 17 anos, munindo-se de lendas e folclore japonês para criar experiências sensoriais que residem entre o desconforto permanente e o perigo. O seu respeito pelas estórias faz com que exista uma maior ressonância nos jogadores, que seguem a trama como um longo e doloroso mistério, onde existe sempre um lado estranhamente emocional e humano no seu cerne. Nem sempre é uma série perfeita, pecando na utilização de sustos fáceis (ou jumpscares) e na representação das suas personagens femininas (especialmente nos últimos título), mas é um exemplo do que considero que funciona neste género. Há muito mais para falar, no entanto, sabe bem afastar o negativismo por um segundo e sentir, mais uma vez, o quanto os videojogos nos podem surpreender.

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