A problemática da crítica

Estou de regresso a casa, num retorno não esperado, mas, admito, inevitável, não fosse a crítica uma parte importante da minha vida profissional e doméstica. Em 2020, desafiei-me a conhecer melhor esta arte, esta ideia de dissecar e analisar – não colocando de parte a experiência e opinião pessoais – um objeto artístico, fosse um filme, um livro, um quadro, uma peça de teatro ou um videojogo. Para muitos, é um trabalho inglório, desnecessário até, com a imagem do crítico a ser lavada com lama, acusado de ser um vendido, um inexperiente – um mestre de nada. A vida é injusta.

O meu objetivo era, em 12 meses, compreender melhor a crítica de videojogos, passando primeiro por uma análise extensiva das suas origens na literatura e no cinema. Infelizmente, o trajeto foi alterado, um desvio inesperado, mas motivado pela minha crescente curiosidade em saber e conhecer melhor a nossa área. Mesmo sem as bases que antevia conquistar, lancei-me na leitura de Introduction to Game Analysis, de Clara Fernández-Vara (primeira edição, 2014), um livro focado na crítica nos videojogos, na sua desconstrução e compreensão através de vários capítulos que comprovam, mais que tudo, como existe uma lacuna criativa e profissional nesta área não por falta de talento dos críticos nacionais e internacionais, mas porque o verdadeiro valor e sentido do conceito de ‘crítica’ é quase impossível de aplicar ao mundo atual e à realidade digital.

É uma previsão apocalítica que, infelizmente, tenho de reiterar um ano depois. Desta vez, a minha preocupação não se foca no advento dos videojogos enquanto serviços e como a disponibilidade de catálogos extensos e acessíveis a todos os jogadores poderá invalidar o papel do crítico no meio. Não é esse o motivo que me leva a pensar e a ponderar uma vez mais sobre o que escrevo e como escrevo. Na verdade, foi Fernández-Vara, a autora do livro, que me atirou para esta espiral descendente em que me vejo a questionar, nesta primeira instância, o valor do nosso trabalho. Isto porque para Fernández-Vara, a crítica, especificamente a jornalística, não pode existir no seu molde atual, apontando o dedo a críticos e a sites da especialidade e acusando-os de criarem falsas críticas, ainda que suavizando o impacto ao compreender a sua posição profissional e as limitações da escrita para websites, indicando, por exemplo, a necessidade de textos curtos e concisos. Para Fernández-Vara, a crítica jornalística está desprovida de análise, alimentando-se de descrições fáceis e de uma linguagem pouco técnica que vive da relação entre entidade e marca e da antecipação dos leitores por um novo videojogo.

Este ataque cerrado não é desleal. É duro, sem dúvidas, mas existe aqui um cuidado com a crítica de videojogos que raramente vejo e sinto nos próprios críticos. Fernández-Vara defende o corte de relação entre críticos, distribuidoras e agências publicitárias, talvez apontando também o fim dos códigos promocionais, numa tentativa de enaltecer o trabalho dos seus colegas. Fernández-Vara identifica as várias modalidades da crítica de videojogos, exemplificando como o foco em determinados tópicos, como o do contexto histórico, das comunidades de jogadores, da narrativa e do próprio game design, podem levar o crítico a realizar uma pesquisa mais completa que seja capaz de enaltecer também os seus estudos de modo a dar ao leitor uma visão mais analítica sobre o videojogo em foco. Para a autora, a área não sobrevive sem este olhar analítico, não pode subsistir pela descrição e não poderá existir nos moldes atuais devido às restrições de conteúdos no tempo exigido pelas distribuidoras.

Em muitos casos, Fernández-Vara quase defende, pela minha leitura, um olhar mais académico sobre a crítica de videojogos, destacando, por exemplo, a importância das terminologias utilizadas por críticos, jornalistas e criadores, conhecimento esse que só poderá nascer da pesquisa exaustiva e de um conhecimento rico, variado e até prévio em videojogos. Fernández-Vara tenta afastar este ideal académico da sua análise, mas torna-se cada vez mais claro quando oferece modelos e práticas específicas que tornariam a escrita de uma crítica num trabalho de semanas, talvez meses, onde todas as pedras seriam viradas, todos os livros analisados e todos os produtores contactados e devidamente entrevistados. Em todos os casos, os críticos escreveriam uma análise por mês, talvez duas. Este cenário é irreal. Não impossível, mas irreal para o modelo em que trabalhamos.

No fundo, seria um formato mais próximo de uma tese académica.

Nasce aqui a diferença. Fernández-Vara não está errada, mas trabalha a partir de um cenário idílico, onde tanto o crítico, como o site que o emprega, tem a disponibilidade total para trabalhar o texto com o tempo e foco necessários. Nem sempre acontece, não na era digital. Existe, talvez, uma falta de especialistas, de críticos preparados para tópicos e géneros específicos, mas tal ausência não nasce de uma falta de vontade criativa e profissional por parte dos críticos. O mercado (e aqui abandono a minha perspetiva independente) não o permite. Antes pelo contrário, o mercado sufoca este trabalho exaustivo, não lhe dá espaço para crescer. Tal como o próprio público.

Existem várias escolas de crítica e consigo ver, quase de forma intuitiva, muitas dessas vertentes vivas nos meus colegas de área. Alguns focam-se mais nas mecânicas, outros no contexto. Muitos colegas fazem descrições extensivas, mas outros olham para o jogo tal como é, sem mais informações e sem analisar os projetos anteriores da produtora. Inconscientemente, utilizamos os ensinamentos de Immanuel Kant (o juízo estético) e Roland Barthes (a obra e o autor são duas entidades distintas), mesmo sem obrigatoriamente os lermos, gerando assim um estilo individual que, aos poucos, cria uma maior ligação com o público português. Temos uma noção quase instintiva do que é um paratexto e de como as análises quer do autor, quer da obra  se influenciam. Mesmo com esta variedade e com esta vontade em criar mais, aliada ao estilo pessoal e à valorização de uma linguagem mais próxima do leitor, seria impossível darmos vida à crítica que Fernández-Vara defende no seu livro. O mundo não o permite.

Não estou a querer fugir ao problema ou a reduzi-lo a um mero desencontro de ideias, mas sim a puxá-lo para a realidade. Não se trata da dedicação do crítico de videojogos, do seu empenho em analisar, se terminou um jogo ou se fez a pesquisa que deveria antes de começar a escrever; trata-se de um trabalho sem tempo para pausas, não só, admitidamente, pela relação com as marcas, como pelas próprias exigências dos leitores e do próprio mercado. Os tempos das revistas, dos panfletos e dos boletins já lá vão. Na era digital, um tema só merece destaque quando é novo, fresco e intrigante para o leitor. Quando a sua popularidade termina, apenas um número muito restrito de leitores quererá saber mais ou pesquisar. Como poderão os sites sobreviver sem a corrida ao embargo?

Talvez me esteja a escapar algo ou a ser ingénuo, talvez até a culpar demasiado o leitor e o próprio mercado digital, mas o crítico encontra-se entre a espada e a parede. As exigências do embargo levam a horas de jogo cansativas, a uma corrida contra o tempo que inclui não só a conclusão da campanha, como a escrita de uma crítica que será lida por centenas ou milhares de pessoas. O relógio não pára. A corrida não é só pela manutenção da relação com as distribuidoras, mas pela necessidade de rendimento, de estar presente e de aproveitar a curta janela de tempo em que um tópico ainda é popular. Um mês depois, não há espaço para revisitar o antigo. Na era digital, a atenção não é permanente, mas sim fugaz. Como sobreviver assim? Só com um público muito restrito. E como poderão todos sobreviver desta forma? Não há público suficiente.

Quero, no entanto, reforçar que estou apenas a focar-me na escrita digital e não na criação de conteúdos audiovisuais para plataformas como YouTube e Vimeo. Apesar de os críticos e investigadores desta nova forma de comunicação enfrentarem outros desafios – alguns que acabam por cruzar-se com os nossos, como a volatilidade do público e dos rendimentos publicitários -, os sites continuam a batalha contra uma realidade em que os jovens se desinteressam mais facilmente pela leitura. A solução não poderá ser, por mais jocosas que sejam as opiniões de quem observa de fora, desistir, mas existe esta barreira de comunicação que os vídeos não têm. É muito mais fácil ver uma análise exaustiva sobre um videojogo pelo qual têm algum interesse do que adquirir um livro ou ler essa mesma crítica em texto.

A informação não só é mais fácil de passar por vídeo, como tem uma maior longevidade e probabilidade de envolver o espetador ao longo de vários minutos ou até horas.

Na minha perspetiva, posso concluir que é impossível criar uma crítica, tal como a apresenta o modelo de Fernández-Vara, no contexto profissional atual. Alguma coisa terá de ceder: ora a relação com as marcas, ora a necessidade de rendimento e de presença nas redes sociais (onde alguns sites independentes, como o GLITCH, acabam por se inserir). O crítico terá de viver longe destas exigências e de criar, por si, um mercado e um tipo de leitor que saberá esperar e aguardar pela sua análise. Isto é quase irreal. Se aplicarmos esta noção ao mercado português, ainda numa luta constante com o marketing digital – em que se continua a valorizar mais o formato de revista e a presença na televisão que a melhoria dos sites e dos seus serviços –, o cenário piora. Estamos a lutar numa batalha perdida.

Com isto não quero dizer que toda a má crítica é, afinal, desculpável. Longe disso. Mesmo contra todas as adversidades, pessoais ou profissionais, cabe ao crítico melhorar a sua escrita, a sua pesquisa e dedicação não só à indústria dos videojogos, como à sua compreensão e ao público que o lê. Tem de existir, em todos os momentos, uma vontade em melhorar e em ir mais além, afastando-nos, progressivamente, desta ideia podre de que somos, em todos os sentidos, um veículo publicitário para as distribuidoras e produtoras, tal como o éramos nos anos 90. Existem, de facto, movimentos que revelam esta luta constante contra as más práticas nos sites e blogues, uma Nova Crítica de Videojogos, termo popularizado por Kieron Gillen, cuja metodologia exige mais dos críticos e do seu profissionalismo. É possível fazermos mais e melhor, olhem também para Portugal e para os esforços independentes que nasceram desta vontade de escrever e falar abertamente sobre videojogos, num país que pouco ou nada respeita o meio. No entanto, precisamos de mais e não depende apenas de nós.

O que terá, então, de mudar? Na minha perspetiva, dois elementos importantes: os embargos e a mentalidade do público. O primeiro, e o mais polémico, requer duas alterações para que os críticos possam não só trabalhar atempadamente na sua análise, como criar uma relação de confiança mais palpável com o próprio leitor. Para isso, as distribuidoras devem enviar os códigos com dois ou três meses de antecedência, para que se permita ao crítico terminar o videojogo, mas também repetir a campanha uma segunda vez, tirar novos apontamentos e refletir sobre o que jogou. Nestes três meses, o crítico terá também tempo e disponibilidade para pesquisar sobre o jogo, o seu género, a produtora, o contexto social e até tecnológico por detrás da criação do videojogo em análise. Todos estes elementos são identificados como essenciais por Fernández-Vara e com esta disponibilidade temporal, o crítico poderia, de facto, dar vida a este enaltecimento da análise. É um trabalho já realizado pelos melhores críticos, e, ao aumentarmos o tempo de embargo, estaremos a criar um cenário ideal para uma pesquisa ainda mais aprofundada e para críticas que não são apenas mais extensas, mas mais ricas em conteúdo. Deixem o crítico respirar: aqui está uma necessidade que as distribuidoras em Portugal, salvo algumas exceções, têm de valorizar e interiorizar.

No entanto, a disponibilidade de tempo não será o suficiente por si só e aqui crio a ponte para o segundo tópico. Os embargos não devem exigir quaisquer restrições de conteúdos, sejam visuais ou narrativas, na escrita de uma análise. As marcas não podem influenciar (mesmo que a lógica seja evitar spoilers), a escrita e o trabalho do crítico, e muito menos limitar os seus tópicos de análise. Isto porque cria no leitor, já de si desconfiado do trabalho do crítico e da sua relação profissional com as produtoras, um desdém pelas análises, culpando os sites por se subjugarem às restrições impostas, como se existisse, no cenário profissional, alguma alternativa. Esta descrença tem de ser eliminada na raiz e as marcas têm de confiar mais no crítico e no seu trabalho, sejam as críticas positivas ou negativas. A crítica não se deve subjugar às necessidades de terceiros.

Por fim, temos o público, desconfiado e descrente, e a sua necessidade pela antecipação, a novidade e o drama. Este trabalho de reeducação tem de ser feito não só pelo crítico, mas também pelo jornalista, numa tentativa de contornar os alicerces do mercado digital e da sua necessidade por conteúdos novos e regulares. O controlo entre objetividade e subjetividade deve ser forte e tem de existir uma vontade de oferecer ao leitor conteúdos aprimorados, onde existem pesquisa e factos, não apenas rumores ou títulos sugestivos. Isto significa, claro, uma perda de destaque, mas é a única forma de combate a um mal em evolução, que, olhando para o mercado atual, ameaça absorver todas as áreas criativas à sua passagem: ou criamos ou não existimos, sejam bons conteúdos ou não.

É um mundo nas suas palmas e a atenção tem de se dividir por vários estímulos. Onde fica, portanto, o lugar da crítica escrita?

Existem, claro, um terceiro e quarto pontos que complementam a relação entre crítico, marcas e público: a metodologia e organização de cada site e a disponibilidade para enveredarmos por uma carreira independente e sem rendimentos. A primeira influencia não só a carga de trabalho do crítico, dando-lhe assim mais tempo para se focar em menos textos, como a criação de uma equipa capaz de fazer frente às exigências do mercado, criando assim análises especializadas para um público que tanto procura opiniões detalhadas e fundamentadas, como aquele que quer apenas ler uma versão simples, acessível e direta. Já a segunda, revela a natureza da nossa indústria nacional e da própria engrenagem da área, onde a produção independente não é regida por deadlines ou exigências de terceiros – fazendo, assim, emergir um público e conteúdos de nicho – mas que é relegada para segundo plano, onde uma carreira profissional nem sempre é possível. Em Portugal, dizemos que é por amor à área. Ainda bem que nos alimentamos somente do poder do amor.

Detesto chegar ao final de um texto sem soluções, mas sinto-me ainda a descobrir um segredo que poderá não ter uma resolução satisfatória. Existe, no entanto, um quebrar da ilusão e uma necessidade de auto-análise que surgiram da leitura de Introduction to Game Analysis. Talvez não seja o melhor (ou único) exemplo, mas foi o suficiente para olhar para a nossa área e para a produção nacional e ver como combatemos um inimigo invisível e impossível de derrotar. E mesmo assim, continuamos a lutar. Há muito amor na crítica, não só pela arte em si, mas também pela indústria dos videojogos e pelos leitores. Os críticos querem, de facto, ajudar a melhorar a área e a dar aos produtores um novo olhar sobre os seus projetos; querem desmontar a produção de videojogos e aprender com ela. Querem ajudar o leitor a saber o que deve comprar e a evitar que seja enganado com projetos maldosos. Quer tanto e pouco apoio tem, assim é a vida do crítico.

Neste prisma, servimos não só os interesses éticos da crítica e os produtores de videojogos, mas também o público. Há um traçar e uma seleção do que é bom ou mau, de acordo com os parâmetros de uma crítica e da opinião pessoal do crítico. Existe um trabalho constante de análise e de contextualização quase invisíveis que acompanham não só o lançamento de um videojogo, como a sua relação com o público-alvo. Um crítico tem de saber comunicar com o seu leitor e explicar-lhe, com detalhe ou de forma sucinta, o que é aquele videojogo e como poderá interessá-lo. O crítico analisa, mas também comunica, há um diálogo permanente e uma confiança que nunca deve ser quebrada. Como fazer isto de forma académica e extensiva? Talvez não seja possível. É aqui que permanecemos.

Surge agora o problema entre teoria e prática. Na teoria, os argumentos de Fernández-Vara são intocáveis, de betão, evidenciando a importância da análise e da pesquisa sobre a opinião pessoal e a experiência do crítico. Na prática, e se olharmos para o mercado atual, percebemos que o público quer, mais do que uma crítica detalhada, uma opinião e uma maior proximidade ao autor. É aqui que nasce a Nova Crítica de Videojogos – esta combinação entre objetividade e subjetividade com a qual escrevemos diariamente –, exigente de uma aprendizagem constante, mas a um passo de cada vez. Por mais que nos sintamos injustiçados ou incompreendidos por profissionais ou académicos, é importante termos este contacto para sabermos a diferença entre a nossa arte crítica e o mundo da crítica geral. No fundo, a indústria dos videojogos ainda é muito nova para absolutismos: ainda estamos todos a perceber como escrever sobre videojogos e a comunicar as nossas teorias.

Não sei como será o futuro, mas sei que, aos poucos, mais críticos e profissionais se juntam nesta luta e nesta busca pelo ideal crítico. A indústria dos videojogos ainda é tão jovem, apesar da sua evolução tecnológica, e nós, críticos, acompanhamo-la lado a lado. Existem muitas adversidades e nem sempre é possível darmos aso ao lado mais académico deste meio, mas texto a texto, quebraremos amarras e preconceitos em Portugal. Não temos tempo, apoios, louvores ou respeito, mas temos um amor incondicional pela crítica e pelos videojogos. Continuamos a melhorar, devagar, às vezes até devagarinho, mas não desistimos. Quem sabe o que nos espera no futuro.

NOTA: Acabo de descobrir que existe uma tese de mestrado, escrita pelo colega Gonçalo Cardoso, sobre a crítica de videojogos em Portugal, intitulada As Características da Crítica de Videojogos em Portugal. Podem ler a tese aqui.

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