Qualquer pessoa sabe escrever. Esta é a frase que ouvimos mais quando decidimos seguir uma carreira em guionismo, jornalismo e literatura. Todos sabem escrever. Não está longe da verdade, claro, mal seria do nosso planeta se a maioria dos habitantes não soubesse, de facto, escrever, mas confunde-se muito a habilidade de transformar objetos em letras com a capacidade de contar e estruturar estórias. É uma batalha perdida, devo admitir, muito difícil de mudar a opinião de um público que pouco ou nada respeita o trabalho de um escritor, mas nunca deixa de ser entusiasmante quando descobrimos um novo filme, peça de teatro ou videojogo que revela o quanto a compreensão da narrativa pode levar à construção de uma experiência inesquecível.
Não vou falar da narrativa de Hades ao pormenor, dos pontos fulcrais da estória e das personagens, mas sim da construção da sua narrativa. Podemos deleitar-nos com os diálogos, com a interpretação dos atores e até com as representações estilizadas deste Panteão de Deuses dos tempos modernos, mas sinto ser mais importante darmos destaque ao trabalho exímio que a Supergiant Games fez na estrutura narrativa de Hades. Para todos os sentidos, estamos perante um roguelike onde o foco está no combate e na progressão através de níveis aleatórios, onde temos acesso a melhorias temporárias (e outras mais permanentes) até que somos obrigados a recomeçar do zero. Se jogaram qualquer roguelike, por mais diferente que possa ser, sentir-se-ão em casa com Hades.

Num primeiro contacto, não há, de facto, grandes diferenças em relação a outros rivais do género. Os níveis são praticamente arenas, a movimentação é rápida e os padrões dos inimigos são sempre inesperados, com a dificuldade a ser uma das grandes apostas desta aventura pela mitologia grega. No entanto, o novo título da Supergiant Games destaca-se pela forma como enaltece a narrativa de Hades e a coloca em primeiro plano, algo raramente visto no género – pelo menos desta forma –, conseguindo colmatar a fraca sensação de progresso que sentimos em alguns dos jogos. Em Hades, cada falha, batalha, escolha temporária, vitória e utilização de itens estão equacionadas pelo design da narrativa e criam a ilusão de que mesmo na derrota, nós avançamos na estória de Zagreus e a assistimos a novos desenvolvimentos regularmente.
Isto é de loucos. Talvez conheçam exemplos melhores, títulos que suplantam a complexidade de Hades a passos largos, mas quero evidenciar o trabalho por detrás de cada decisão. Como disse, Hades pondera qualquer escolha que façam, até na derrota. Quando regressam ao ponto de partida, por exemplo, têm uma panóplia de momentos narrativos que vão desde uma simples conversa até ao desbloqueio de novas personagens e zonas de interação. Se derrotarem, por exemplo, um dos bosses, terão a oportunidade de falar com ele e perceber melhor a sua personalidade. Mas não só. Cada personagem acaba por ter uma estória pessoal, uma motivação que afeta a viagem de Zagreus direta ou indiretamente, e estes momentos só surgem: 1) se derrotarmos estas personagens em combate; 2) se avançarmos até uma determinada zona; 3) se eliminarmos outras personagens com as quais podem interagir. E estas três possibilidades são apenas o começo.

Repito: isto é de loucos. Aliás, isto é uma equação constante de quinto ou sexto grau que se resolve em segundo plano, criando uma sensação deliciosa de naturalidade na progressão da campanha. Como guionista, fico surpreso com o poder de previsão da Supergiant Games e com a sua ambição em interligar todos os momentos narrativos para criar um mundo em constante expansão. Isto é difícil de fazer. Existem demasiadas variantes que afetam a escrita não só dos momentos mais importantes, como o desenvolvimento de personagens: e esta progressão tem de fazer sempre sentido para o jogador. Os acontecimentos não se podem atropelar ou cancelar à medida que avançamos.
Dou-vos um exemplo prático. Megaera é a primeira boss do jogo. Num primeiro confronto, percebemos que existe uma história entre Zagreus e a Fúria. Não sabemos porquê, mas ela está encarregue de parar o príncipe de chegar ao exterior. Se perdermos, o jovem deus reage à derrota assim que regressa ao palácio de Hades e as personagens à sua volta comentam sobre a batalha. No entanto, se regressarmos a Megaera, a nossa adversária também vai contar com o resultado da sua primeira vitória. O diálogo muda, é completamente novo. Desta vez, vencem, o que obriga Mageara a regressar ao ponto de partida, dando-vos a possibilidade de interagir com ela e perceber melhor o seu passado. Se isto acontecer mais do que uma vez, poderão encontrá-la a falar com Nyx sobre as suas irmãs. Isto nunca para: esta é a progressão maleável de Hades.

Qual é o problema deste tipo de estruturas? Cada escolha e ramificação obriga-nos a não só antever a direção da estória, mas também a escrever novos diálogos e momentos narrativos. Isto significa que podemos ter 10 variações de um diálogo numa só sequência. Isto significa que teremos de escrever o quadruplo sem nunca perder o fio condutor que liga estas escolhas. É o equivalente a criarmos dimensões paralelas, quais feiticeiros do tempo, para cada macro escolha no jogo. Nunca deixarei de ficar impressionado com esta dedicação, especialmente quando já senti na pele a dificuldade de interligar todas as probabilidades narrativas num só projeto. Nunca se esqueçam: estas escolhas pressupõem testes e revisões. Os diálogos que leem não são, quase garantidamente, primeiras versões. É muito trabalho. Um trabalho com mais de 300 mil palavras, para ser mais preciso.
Como escrever uma estória com tantas ramificações e probabilidades? O nível de organização e planeamento é assustador, e apenas posso imaginar as horas de testes e revisões que a equipa de guionistas fez. Este tipo de estrutura não nasce por si só, é preciso compreender o mundo do jogo, as suas personagens, quais os pontos narrativos mais importantes e como implementá-los organicamente. É preciso falhar inúmeras vezes até encontrarmos o equilíbrio perfeito. Talvez seja tudo uma ilusão e Hades é muito mais simples de desmontar e analisar, mas é esta incerta que acho tão deliciosa num projeto como este. Como guionista, que sabe o que é estruturar uma série com vários episódios – onde uma só mudança obriga-nos a revisitar todos os episódios e momentos dramáticos –, posso-vos garantir que existem sempre atalhos e falhas previstas/programadas que somos obrigados a assumir, mas também devo sublinhar que só conseguimos chegar às versões finais depois de muitas horas de sono perdido – e post-its por todo o lado.

Hades brinca e arrisca com a ideia de narrativa em jogos roguelike e fá-lo sem nunca sair da estrutura basilar do género. Como? É simples: o jogador é o centro. As decisões são feitas por si e o jogo simplesmente reage às escolhas e à sua prestação nos combates. É o jogador que cria, por assim dizer, novas probabilidades e caminhos alternativos numa estrutura e progressão que são sempre mais lineares do que aparentam ser. Não é o ponto de chegada que interessa, mas sim a viagem – desculpem o cliché. Isto significa que Hades também consegue disfarçar os momentos narrativos programados, misturando-os com todas as probabilidades orgânicas, criando assim a sensação que a mais pequena ação dá origem a algo novo. Estamos sempre a encontrar algo.
No entanto, a Supergiant Games também aproveita a aleatoriedade dos roguelikes para selecionar os diálogos ao longo do jogo, uma tática fantástica e perfeitamente capaz de manter viva a ilusão que descrevia anteriormente. Porém, estas opções aleatórias têm estados e ativações diferentes, e aqui voltamos à importância das escolhas dos jogadores na equação. Se tivermos uma determinada arma, vamos ativar um leque específicos de diálogos, com falas que avançam a estória principal. Para mais detalhes sobre esta aleatoriedade programada, daquelas contradições que ficam bem em teses, vejam o vídeo do canal People Make Games.

Qualquer pessoa consegue escrever: ponto mais que definido. No entanto, a dedicação para criar e estruturar uma estória já não é tão comum. Assim é a vida. Hades fascinou-me pela sua dedicação ao ato de contar uma estória e a sua determinação em moldar um género com tanto para dar, ainda que seja mais conhecido pelas suas mecânicas, e desconstruir o recomeço constante para o adicionar à sua progressão. Foi refrescante deparar-me com Hades, não interessa se é o melhor ou o pior exemplo, e ver as ramificações e ligações entre momentos narrativos. Foi, acima de tudo, uma enorme motivação para continuar a escrever, a arriscar e a ser o melhor guionista/narrative designer possível. Não são apenas as decisões e os momentos narrativos que interessam, mas sim a forma como se interligam e dão algo ao jogador. É o foco em vocês, caros leitores, que torna tudo tão especial. Que esta lição fique convosco.