Vivo num estado perpétuo de curiosidade e desapontamento com o género Soulslike. Se, por um lado, não consigo resistir à sua doce promessa de dificuldade, de combate ponderado e de um mundo interligado e propenso à exploração, por outro, vejo-me cansado da fórmula, das barras limitadas de energia, dos inimigos aborrecidos e cenários desinteressantes. A Cold Symmetry, que se estreia no género, decidiu quebrar as minhas expectativas e levou-me numa viagem intensa por um dos Soulslike mais interessantes dos últimos anos, desconstruindo a fórmula e adicionando novas mecânicas sem perder o foco que tornou a série da FromSoftware num fenómeno internacional.

De facto, a Cold Symmetry parecia estar determinada em tornar o género seu, em moldá-lo às suas próprias ambições e em construir algo novo. Mortal Shell nasce desta busca por identidade e por um lugar na indústria, demonstrando eficazmente como a produtora, apesar de ser o seu primeiro projeto, compreende a fórmula Soulslike e a conseguiu evoluir através de novas mecânicas. A aposta numa estória vaga e mais visual continua presente, um elemento incontornável no género, tal como a estrutura aberta e um mundo dividido por zonas distintas com inimigos intimidantes e uma panóplia de armadilhas e outros perigos. Mas fora a sua estrutura, Mortal Shell despiu-se de muitos dos clichés do género e apostou num sistema de combate mais defensivo e numa evolução de personagem que desafia as definições de classe e personalização num RPG.
Esta rutura é acentuada. Classes, níveis, pontos de atributo e a personalização foram reinventadas em Mortal Shell. Não evoluímos diretamente a nossa personagem, mas sim as Shells, ou cascas, que encontramos ao longo da campanha. Estas Shells, que são personificadas por guerreiros do passado, constituem as classes do jogo, cada uma com as suas vantagens e desvantagens – como mais pontos de vida, ataques mais lentos, mais stamina –, obrigando-nos a escolher a forma como queremos abordar os desafios do jogo. Só podemos usar uma Shell de cada vez e a sua evolução também é individual, o que significa que devemos ponderar sobre os atributos que queremos melhorar. É uma escolha peculiar, mas não quebra por completo com o molde e com o tempo conseguimos habituar-nos à troca de corpos, à combinação entre armas e habilidades, e à aposta em pontos de Glimpse – mais raros e que perdemos sempre que somos derrotados, o que os torna mais limitados – para a evolução destes guerreiros
Mortal Shell é um jogo extremamente focado e fiquei empolgado com a sua ausência de mecânicas e opções de combate desnecessárias. As armas são limitadas, mas servem um propósito nos conflitos, e as habilidades são intuitivas e fáceis de utilizar. Existe uma certa clareza nas mecânicas, apesar de algumas escolhas de design serem menos interessantes, que contrasta com o mundo opressivo e vago do jogo, e é refrescante encontrar um RPG de ação que não tenta compensar uma falta de exploração com mecânicas descartáveis. Existem opções para todos os os jogadores, desde os mais defensivos aos mais agressivos, e poderão evoluir as vossas Shells e armas como quiserem.

O sistema de combate é mais lento, pesado e ponderado, mas nunca injusto. Não há nada de original nas suas mecânicas, na utilização de uma barra de stamina ou até na sua aposta num sistema de parry e contra-ataque, que nos permite recuperar pontos de vida ou disferir dano adicional aos inimigos, mas Mortal Shell traz consigo um trunfo na manga, uma mecânica que irá, na minha opinião, ditar se vão ou não gostar do que tem para oferecer. Isto porque Mortal Shell não tem um botão de defesa. Não podem equipar escudos e bloquear golpes enquanto se movimentam livremente pelos cenários. O que podem fazer, no entanto, é tornar a vossa Shell em pedra. Hardening é o sistema de defesa do jogo, uma aposta peculiar e muito intimidante que acaba por se revelar como uma lufada de ar fresco. Ao transformarmos o nosso corpo em pedra, podemos parar qualquer golpe, por mais mortal que seja. Existe, no entanto, um limite temporal para o número de vezes que podemos utilizar este método de defesa, mas Mortal Shell exige que mantenhamos a distância, algo que este sistema complementa perfeitamente.
À medida que jogamos, esta mecânica torna-se mais intuitiva e começamos a descobrir as suas vantagens em combate. Começamos a perceber, por exemplo, que podemos endurecer a meio de um ataque e preparar a ofensiva assim que formos atacados. Descobrimos que é possível parar qualquer ataque, o que nos leva a utilizar esta opção nos momentos mais desafiantes e não apenas o botão de desvio. Por fim, encontramos métodos de cura que dependem desta transformação, o que significa que recuperamos energia sempre que somos atacados. São pequenos pormenores que adicionamos às nossas táticas e que exponenciam a jogabilidade de Mortal Shell, contornando a ausência de um botão de defesa tradicional ou até de um equivalente aos Estus Flasks. Só está presente o que é essencial.

A Cold Symmetry guardou ainda mais duas surpresas para Mortal Shell. A primeira, e a mais interessante, é a possibilidade de sairmos das Shells após sermos derrotados. Como Sekiro: Shadows Die Twice, temos a oportunidade de continuar em combate mesmo depois de vermos a nossa barra de energia a chegar ao fim. Sem uma casca, somos impotentes, um ser sem cara ou personalidade e morremos com um só toque. Para não perdermos o progresso, temos de regressar à Shell e continuar em combate. Se não o conseguirmos fazer, regressamos ao último ponto de gravação e temos uma só oportunidade para recuperar o alcatrão (as almas deste jogo) que deixamos para trás. Esta incorporação da casca só pode acontecer uma vez por partida, mas existem itens que nos permitem reativar a habilidade. Fica aqui a dica.
A segunda mecânica é menos positiva, pelo menos a nível pessoal, e foi inspirada pelos roguelikes. Ao contrário de outros jogos do género, não temos acesso a uma descrição dos itens até os utilizarmos. Não sabemos qual será o seu efeito ou a sua utilidade, se se trata de um item de cura ou de um presente envenenado. Esta escolha deixou-me dividido. Apesar de gostar da sua utilização nos roguelikes, que estão assentes no recomeço constante, aqui vi-me descontente com a perda de itens mais raros por não saber qual seria a sua utilidade. Compreendo que esta ausência de informação injete algum mistério ao mundo do jogo, mas podia ser mais inofensiva. No entanto, apreciei o sistema de familiaridade, que determina a eficácia dos itens. Quando atingimos o nível máximo, temos acesso a efeitos adicionais, numa tentativa de contornar as perdas sofridas pela ausência de informação. Uma boa compensação.

O mundo de Mortal Shell é diferente, muito assustador e intimidante, e consegue-o pelo design interligado, pelas zonas macabras e pela estória estranha e peculiar que desenvolve ao longo da campanha. É um mundo cheio de personalidade, mesmo com a presença de alguns bugs e de uma falta de definição apurada nas consolas (especialmente nas texturas), que vive dos seus caminhos alternativos e dos segredos que esconde em todos os seus recantos. Sejam os pântanos pegajosos, as estruturas monolíticas, os fornos infernais ou as montanhas geladas; há uma magia opressiva neste mundo intimidante. Não fiquei inteiramente convencido com o design e IA dos inimigos, mas há muito tempo que não me sentia tenso a explorar, onde a dificuldade motivava e intimidava-me a cada passo que dava.
A Cold Symmetry trouxe-nos uma verdadeira surpresa neste final de 2020 e um excelente título para os fãs do género. É uma aposta muito limada e sem receio de inovar. Mesmo sem componente online, cooperativa ou competitiva, e com bosses pouco imaginativos, que dependem demasiado em padrões fáceis de ler, é uma entrada forte numa fórmula que precisa urgentemente de sangue novo. Para primeiro projeto, Mortal Shell está mais que aprovado. Fico à espera da sequela.

O código para análise (Xbox One) foi cedido pela Evolve.