Into A Dream passa do sonho para a realidade num lançamento recente que chama à atenção. Um jogo indie português de elevada qualidade que aborda temáticas emocionais com a mestria da empatia, da paciência e da coragem para dar um salto de fé – quer na produção de jogos nacional, como na exposição de assuntos necessários de abordar.

Into A Dream já nos tinha chamado a atenção no início deste ano, quando jogámos a demo do jogo de Filipe F. Thomaz. A versão final do título, lançada no início de agosto, não deixa dúvidas: os meses de produção – mesmo em plena pandemia – foram de uma produtividade elevada. Poderão esperar cerca de três horas de jogo, numa jornada emocional que tem um pouco de tudo: do simbolismo à emoção, do suspense ao thriller, de momentos de suster a respiração a sequências nas quais é impossível não sentir um murro no estômago.
Em Into A Dream vestimos a pele de John Stevens, alguém que acorda dentro da mente e/ou sonhos de Luke Williams, um homem num estado de depressão profunda. O jogador tem a tarefa de o ajudar e, para isso, será preciso desvendar a história de Luke – no fundo o que o levou a estar mergulhado na doença mental, num estado avançado, no qual já não se vê a luz da esperança. Realidade e sonho cruzam-se numa cronologia não linear, na qual os acontecimentos se sucedem através de uma viagem por várias localizações, acontecimentos e situações reais e irreais.
Tal como já havíamos referido na nossa preview, Into A Dream é um jogo 2D centrado na narrativa. Contudo, os puzzles são outras das estrelas do título. Os desafios são acessíveis e variados – poderão contar com os tradicionais quebra-cabeças, plataformas, combinações, e outros tantos que utilizam objetos da narrativa para serem desbloqueados. Narrativa e puzzles unem-se de forma coesa, com o jogo a conseguir ainda tirar partido do contexto da história para criar quebra-cabeças temáticos que tornam a experiência mais rica e interativa.
O objetivo de Into A Dream não é ser um jogo difícil, é ser um jogo reflexivo. E esta proeza é conseguida a 100%. Into A Dream explora a temática da depressão de forma inteligente, sagaz e original, recorrendo a uma narrativa rica e a elementos visuais cheios de simbolismo para contar uma história carregada de emoção. É uma dança de mestre entre os tópicos e camadas da saúde mental, dando ao jogador um misto de desconforto e alívio, sempre com o objetivo, assim considero, de levar ao questionamento.
É um jogo sobre empatia, sobre como as doenças mentais podem deturpar a realidade e acabar por isolar quem sofre delas, de tudo e todos. A jornada de Luke Williams, um homem em estado de depressão profunda, é apresentada de uma forma realista e, graças a uma combinação perfeita de elementos visuais e sonoros, sente-se autêntica durante toda a história. O equilíbrio é um dos pontos mais coesos e bem conseguidos de Into A Dream: não há “paninhos quentes” para falar de depressão e dos efeitos devastadores da doença, mas também parece existir sempre a sensação de “rede de salvação”, que nos ajuda a suportar a queda que é, tantas vezes, a compreensão desta realidade.
Fica o aviso para possíveis “triggers” de que Into A Dream aborda temáticas como a morte, separação, culpabilização, isolamento e suicídio. Vale a pena ter em conta este elemento antes de jogarem. Devo dizer que a primeira das temáticas me tocou profundamente e que Into A Dream acabou por se tornar uma experiência quase catártica. Contudo, somos todos diferentes e é imprescindível ter em conta que esta é uma experiência interativa profunda – especialmente se estiverem a lidar, atualmente, com alguma das questões que referi acima.
Os elementos visuais e sonoros e a simbologia de Into A Dream continuam a ser os pontos mais fortes do jogo indie. Into A Dream brinda-nos com uma representação interessante daquilo que pode ser a depressão: um misto de luz e sombras, aqui representado, por exemplo, por momentos nos quais ficamos a apreciar um arco-íris e, outros, em que nos deslocamos sob uma densa floresta, pintada a uma paleta de cores indistinta de cinzentos. O título indie utiliza ainda estes elementos para nos mostrar a complexidade da mente, numa dualidade entre ambientes aparentemente estáveis e estados de espírito de puro caos.
À medida que vamos progredindo na história, vamos desvendando os fantasmas da mente de Luke, até descobrirmos onde moram, que formas assumem e como são representados. Este dualismo, de duas realidades completamente distintas, com direções de arte diferentes, é mais uma das provas de que Into A Dream é um trabalho complexo.
Esta representação interativa e artística da depressão acontece ainda ao nível do ritmo do jogo, que utiliza a passagem de tempo para espelhar a dimensão deste estado psicológico: o tempo que, por vezes, se assemelha a um limbo e, noutros momentos, é veloz e implacável – Into a Dream faz isto propositadamente, com uma narrativa não linear que mistura passado e futuro.
É impossível analisar Into A Dream sem referir ainda a soberba banda sonora deste jogo. As melodias, originais e da autoria de Filipe F. Thomaz, encaixam na perfeição na narrativa, explorando o género clássico ao longo de um espectro variado de emoções – positivas e negativas – com melodias que embalam e outras que desconcertam.
Na nossa antevisão referíamos não ter conseguido jogar em português e é com satisfação que constatei que esta versão final tem legendas em PT-BR. Confesso que achava pertinente que o jogo incluísse localização para português, não só por ser uma criação nacional, mas por sentir também que se trata de um título com um potencial educativo enorme. Não é um jogo para crianças, de todo, mas certamente poderia servir como ferramenta de aprendizagem e reflexão para camadas acima dos 16/18 anos. Infelizmente, tal não é uma opção em Into A Dream e é pena.
Apesar de ser visualmente apelativo e ter uma direção artística polida, Into A Dream não é um jogo de gráficos, animações ou mecânicas AAA. Mas também não é esse o seu objetivo. Ainda assim, é necessário referir, neste campo, que, por vezes, os movimentos do protagonista que controlamos se sentem pesados e pouco fluidos, especialmente nos saltos e subidas. Apesar desta questão, não registámos qualquer bug durante a nossa sessão de jogo para esta análise.
Numa altura em que o estigma associado a doenças mentais é cada vez mais deitado por terra e na qual se começam a ter discussões saudáveis acerca da importância da terapia e da necessidade de conhecer sinais relacionados com a depressão e ansiedade, o jogo indie de Thomaz chega para dor força, voz e interatividade a esta conversação necessária. Há qualquer coisa de simbólico em assumir o papel de interveniente no processo de depressão de alguém. Afinal, em muitos casos, este diagnóstico é solitário, escondido e fechado sobre si mesmo.
Mas, Into A Dream abre-nos a porta para a mente, coloca-nos no centro da discussão metafórica deste problema e, sem medos, cria uma representação de um conceito que, na maior parte dos casos, ocorre somente dentro da cabeça de quem lida com este problema. No fundo, coloca-nos no centro de uma discussão metafórica sobre saúde mental, depressão, e sobre a possibilidade ou impossibilidade de ajudar alguém. Afinal, quantos de nós lidam ou conhecem alguém que lida com este problema? Quantos de nós tentam ajudar tal como John Stevens faz nesta história?
Into A Dream é um jogo com uma narrativa rica e complexa que explora, de forma responsável e empática, temáticas emocionais de extrema relevância. Uma produção nacional, e a solo, que arrisca sair fora do padrão para oferecer aos jogadores uma experiência diferente, com mecânicas simples, mas memorável. Obrigatório para os fãs de jogos narrativos.
Bónus: há um gato em Into A Dream. E, sim, podem fazer-lhe festas.

O código para análise foi cedido por Filipe F. Thomaz
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