Dizer que vivemos em tempos estranhos é em si estranho, sempre vivemos nestes tempos e isso é que é triste. O racismo nunca desapareceu; esconde-se atrás da cortina e sussurra comentários de café ou nas redes sociais quando comentam a personagem X ou Y ser negra; e grita quando se perdem vidas como a de George Floyd, entre muitos.
Quando abordamos o tema da diversidade e da inclusão, há tanto e tanto por escrever que neste artigo decidimos apenas abordar as personagens negras nos jogos.
Jogar liberta-nos do nosso quotidiano e permite-nos encarnar outras personagens: homens, mulheres, negros, brancos, LGBT ou mesmo elementos da natureza como o vento, em Flower. E nesta peça quero lembrar-me de jogos que joguei onde encarnei ou havia personagens negras, tanto principais como secundárias, mas que pudessem servir de exemplo para toda uma comunidade que procura e deve ser representada. Há muitas, mas esta é uma lista pessoal.
Barret Wallace – Final Fantasy VII
Fácil, não? Ainda por cima com um remake fresco na memória.
De início, Barret pode ser problemático com a sua aparência à Mr. T. Parece que os japoneses viram um episódio de The A-Team e pensaram que os homens negros eram todos assim. A linguagem demasiado colorida também não ajudava. Quando ganhou voz no remake, as coisas não melhoraram, mas… e é um mas forte, a personagem de Barret teve um desenvolvimento brutal que deitou abaixo as impressões iniciais.
A sua força não era apenas física, mas emocional e de convicções. Para além dos laços ternurentos com a sua filha e do seu passado, Barret continua a lutar por um futuro melhor, por um planeta melhor e contra o sistema, com um dos melhores diálogos do jogo.
Menção especial para Kiros, de Final Fantasy VIII, e para Sazh, de Final Fantasy XIII. Goste-se ou não do jogo, é uma das melhores personagens que foi aparecendo nas sequelas.

David Anderson – Mass Effect
Mass Effect, Dragon Age e outros jogos da Bioware permitem-nos personalizar a nossa personagem e salvar a galáxia, o reino ou o dia no papel do nosso herói ou heroína favorita: nós mesmos. Estas opções não se restringiam só à cor da pele, mas também a comportamentos ou orientações sexuais e, no final, acabávamos por ser nós a moldar a história.
Mas queria falar deste homem: David Anderson, com a voz poderosa de Keith David. Na trilogia é uma personagem secundária, mas nos livros que a acompanham, é uma das personagens principais.
Anderson é o mentor da personagem Shepard e as suas palavras acompanham-no pela galáxia, mas ele não é feito só de palavras, mas de acções, não tendo receio de arregaçar as mangas para ajudar o elenco a sair de apuros. Mediante o nosso percurso pelo enredo, Anderson pode acabar numa das posições mais poderosas da galáxia, mas o seu único desejo é voltar à acção. E volta, proporcionando uma das cenas mais memoráveis e emocionantes da saga.
Em Mass Effect 2, conhecemos o Jacob Taylor que se junta a Shepard numa missão suicida. Caso joguem com uma Shepard, podem começar uma relação com ele e conhecer melhor o passado da personagem e a respectiva relação com o seu pai.

Lee Everett/Clementine – The Walking Dead
Difícil escolher só uma personagem quando as duas são boas; ou quando as duas juntas são fantásticas.
A primeira temporada da aventura da Telltale é considerada das melhores da série, em boa parte devido à dupla: Lee como figura paternal e Clem como uma criança inocente num mundo virado do avesso. Goste-se ou não do formato episódico, tal permitiu-nos assistir às suas evoluções ao longo do tempo, tanto real como em jogo. Ver como se afeiçoaram e aprenderam um com o outro. No final, Lee tem a sua redenção e Clementine vai crescendo e amadurecendo.
Se um Lee sozinho pode ser só mais uma personagem num mundo pós-apocalíptico, já a Clementine nunca poderá ser só mais uma criança no mesmo mundo. A Clementine é o reflexo dos jogadores, de várias crianças que são obrigadas a crescer muito rapidamente num ambiente hostil. Pode ser num mundo cheio de zombies ou em silêncio, na casa ao lado.
A sua voz, os diálogos são de uma profundidade incrível.

Sam, Henry e Riley – The Last of Us
Em jeito de estágio para a sequela, comecei há dias The Last of Us, que só joguei mais dez vezes por ser dos meus jogos favoritos de todo o sempre.
Tal como em The Walking Dead, acompanhamos o par Joel e Ellie num mundo pós-apocalíptico, onde vamos conhecendo outras personagens que fazem o melhor para sobreviver mais um dia. Os irmãos Sam e Henry surgem como um espelho à dinâmica das personagens principais, mas unidos pelo sangue. O grupo apoia-se durante uma parte do jogo e acabam por partilhar paixões e experiências. Apesar de Sam partilhar a idade da Ellie, nota-se a sua inocência quando descobre um pequeno brinquedo numa loja, mas repreendido pelo irmão mais velho, deixa-o para trás porque não é essencial para sobreviverem.
O Sam, a Ellie e a Clementine são aquelas crianças sem espaço para o serem, que são obrigadas a crescer demasiado rápido e a confrontarem a sua mortalidade. E quando esse momento chega, The Last of Us relembra-nos que não é uma história feliz.
Já a Riley surgiu nas comics e no DLC Left Behind, e podemos criticar muita coisa, mas nunca a dinâmica entre a Ellie e a Riley que espero que venha a ter impacto na sequela. Esta curta aventura acompanha as duas amigas numa visita a um centro comercial, algo completamente banal nos dias de hoje, mas para as duas crianças é algo fora daquele mundo. Existe uma falsa sensação de segurança enquanto brincamos e descobrimos o que é ser uma miúda nos tempos pré-vírus, tipo hoje!, mas é fantástico aquele slice of life com personagens bem humanas para tudo correr pessimamente mal no final, ou não estivéssemos a escrever sobre The Last of Us.

E para acabarmos bem, uma menção para Nadine Ross, de Uncharted 4/The Lost Legacy e Nilin, de Remember Me. Ambos os jogos contam com uma excelente narrativa e com personagens interessantes, mas se o Uncharted já era uma aposta ganha, o Remember Me foi uma agradável surpresa e dei por mim investido naquele universo e no desenvolvimento da personagem. O jogo tem algumas falhas óbvias, mas para um IP novo, foi o suficiente para continuar a suportar a Dontnod.
Não consigo mencionar todas as personagens porque ainda são muitas, e ainda bem!
Felizmente, existem imensas personagens negras espalhadas em vários géneros, desde fighters a RPG. Boas influências, más influências, heróis, vilões, a lutar contra o sistema ou parte do sistema e é bom que haja esta dualidade, quer dizer que a personagem não é um simples token, mas alguém que existe e merece o seu lugar ao Sol.
Dito quase tudo, nestes tempos complicados, mantenham-se seguros, de mente e de coração aberto.