KIDS | GLITCH REVIEW

Quantas vezes por dia seguem a multidão? E quantas vezes decidem, pelo contrário, ir contra a maré? Seja ela feita de escolhas, caminhos, planos, normas sociais ou sonhos? KIDS é uma experiência interativa singular, que explora esta dicotomia de forma artística e metafórica. Tem um quê de “Quem mexeu no meu queijo” e é quase como uma reflexão feita numa encruzilhada…

“Vem por aqui!
Vem por aqui!!
Não, não vou por aí
Só vou por onde me levam meus próprios passos
E nunca vou por aí
A minha glória é essa, criar
Eu tenho a minha loucura
Não sei por onde vou
Não sei pra onde vou
Sei que não vou por aí!”

Os fãs de Sam The Kid reconhecerão esta passagem como sendo d’ “A partir de Agora”, os amantes de poesia saberão, de imediato, que se trata d’ “O Cântico Negro” de José Régio – já, todos os outros, ouçam aqui, que vale a pena. KIDS, descrito pela produtora Playables como “uma curta animação interativa”, pode ser resumido com este poema. Falamos de um título com uma abordagem minimalista, que explora o movimento de multidões, colocando o jogador no meio de um grupo homogéneo de NPC’s feitos à sua imagem. A questão reside, quase sempre, no tal “Vem por aqui!” / “Não, não vou por aí”.

Ao longo de 34 níveis, maioritariamente de curta duração e em formato vinheta, o jogador é convidado a fazer parte da multidão, podendo escolher mover-se com ela, mover-se contra ela, afastar-se dela ou, em alguns casos, comandá-la. Num formato que une surrealismo e um tom quase hipnótico, os níveis dividem-se em momentos curiosos – num nível, o jogador poderá estar no centro de uma discussão, entre humanos sem cara, acerca de que direção tomar; noutro, a ajudar o grupo a navegar por tubos, pelo grande vazio ou, até mesmo, a saltar para um buraco negro.

Paradoxalmente, apesar da simplicidade, KIDS é difícil de explicar.
Na sua generalidade atua como uma metáfora e/ou conceito que poderá ter diferentes interpretações. É, na verdade, muito mais uma experiência reflexiva do que um jogo tradicional e, talvez por isso, os próprios criadores deixem claro que a reação a KIDS é diferente de pessoa para pessoa – “para uns, é negro, para outros, hilariante”, contaram ao The Verge.

KIDS foi desenhado por Michael Frei (que criou cerca de quatro mil frames só da personagem principal) e programado por Mario von Rickenbach. O título aposta num estilo monocromático, a preto e branco, que é, por vezes, “colorido” por uma banda sonora incrível, criada por Olav Lervik e Riga Cathedral Boys Choir. É um jogo simples no conceito, na jogabilidade, na arte, na passagem dos níveis e nos diálogos. Contudo, é inteiramente complexo em significados e interpretações.

Há uma leveza intrínseca ao protagonista de KIDS. Uma leveza que, na verdade, pode chegar a ser insustentável, dependendo do jogador: escolherá este a leveza do movimento livre ou o peso do compromisso de se mover, com a multidão, de certa forma? Poder escolher entre seguir a multidão ou contrariar o movimento homogéneo das massas assume-se como uma quase metáfora para a vida – especialmente nos níveis em que é muito mais exigente lutar contra a corrente do que nos deixarmos ir. Há um piscar de olho claro a temáticas filosóficas como o existencialismo, já que, nestes casos, arriscar e procurar ser autêntico (isto é, mover-se de forma independente da multidão) é uma tarefa mais árdua, cuja recompensa seria, na vida real pelo menos, a busca/encontro de si mesmo.

É neste tecido de reflexão que se constrói KIDS, já disponível para PC, Android e iOS, por cerca de 3€ – um valor que considero justo já que se trata de um trabalho artístico com valor acrescentado. É um jogo para todos, incluindo não jogadores, que deve ser jogado num ambiente calmo e silencioso – não é jogo para ser jogado nos transportes públicos.

KIDS é aberto a interpretações, surreal, hipnótico. Uma experiência interativa com valores de produção elevados que todos os jogadores deveriam jogar. Uma criação que nos faz refletir sem que, por isso, nos prive de momentos divertidos e descontraídos. Um título que prova que os títulos mobile são, realmente, videojogos “a sério”.

A escala utilizada é de 1 a 10

O código para análise foi cedido pela Playables.

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