Em 2002, a minha vida tinha acabado de mudar. Com apenas 15 anos, abandonei amigos de infância, mudei de escola e escolhi o trajeto que viria a trazer-me aqui, exatamente a este texto, depois de um curso de cinema, de estágios em sites de videojogos e de colaborações com outras publicações, algumas já desaparecidas. 2002 foi há 17 anos, há demasiado tempo, mas foi o ano em que joguei e me apaixonei pelo mundo de Kingdom Hearts, uma estranha colaboração entre a Disney e a Squaresoft, antes de se fundir com a Enix, que parecia ser apenas uma partida de mau gosto. Mas não. A minha antecipação era imensurável, levando-me a comprar o jogo na semana de lançamento. Mas 2002 foi há 17 anos e em 2019, agora com 31, vejo-me numa relação conflituosa com Kingdom Hearts III e a aperceber-me de que perdi, até certo ponto, um amigo e uma memória de adolescência.
Não é fácil ser-se fã de Kingdom Hearts e eu respeito isso. Ao longo de 17 anos, recebemos sequelas, spin-offs e muitas promessas, juntamente com adiamentos, desilusões e uma história em constante expansão para outras plataformas e gerações de consolas. Mas a promessa manteve-se: a segunda sequela, o final perfeito, estava a chegar. Kingdom Hearts III é essa promessa, esse final, mas, para mim, chegou demasiado tarde. Posso queixar-me da história, das personagens e dos seus diálogos, mas acho que há algo mais profundo no meu afastamento, algo inevitável: o crescimento. 17 anos é mesmo muito tempo.
Cheguei a Kingdom Hearts III com os primeiros dois jogos completos, mas com um estudo intenso da história e dos restantes títulos da série. Falar, portanto, da história é uma injustiça para o jogo e para os seus fãs, que tantas horas depositaram na narrativa e na sua compreensão, e eu sei disso, mas consigo, no entanto, observar agora a sua forma e estrutura ao longo da campanha sem fanatismo ou memórias de adolescência. Se Kingdom Hearts II é capaz ainda de me toldar a visão, nomeadamente pela sua presença na minha vida enquanto jogador, já o terceiro capítulo, que chegou agora às consolas, não tem a mesma sorte. É certo que não compreendo alguns dos conceitos que a série força ao longo da sua complexa história, mas os problemas são evidentes.

Para mim, Tetsuya Nomura não é um bom argumentista. Não é um bom planeador, não sabe estruturar uma história e muito menos tem o que é preciso para escrever um bom diálogo; fluído, eloquente e direto ao assunto. Não, Nomura é um argumentista de ideias. É um guionista/diretor que adora criar mundos e conceitos, desenvolver ideias, vê-las florir, mas sem nunca saber implementá-las corretamente. É um homem de guisados, de sopas da pedra, onde tudo é possível, independentemente dos ingredientes. Em Kingdom Hearts III, a sua inépcia torna-se ainda mais clara, incontornável e, para mim, distrativa. Não quer dizer que as ideias sejam más, mas é frustrante observar as peças a encaixarem apenas porque Nomura as força.
Existem dois mecanismos narrativos que abomino por completo: exposição e flashbacks. Sem surpresas, Kingdom Hearts III comete estes dois pecados a um ritmo alarmante, demonstrando como Nomura está mais preocupado em interligar as histórias que criou, muito provavelmente sem um plano concreto, do que em contar uma história equilibrada e bem estruturada. A exposição, por exemplo, faz parte de todos os diálogos do jogo, com as personagens a debitarem informações desnecessárias para a ação apenas para contextualizar os jogadores acerca dos fios narrativos que foram mal implementados ou explicados. É normal vermos coisas como “isto é igual a isto por causa de X e Y”, ou “isto faz-me pensar naquele evento, onde tu estiveste”, levando a personagem A a explicar algo que a personagem B (e o jogador) observou há momentos atrás. A necessidade de exposição é tão grande que consigo, até agora, resumir a maioria das sequências de diálogo numa frase. Os flashbacks servem o mesmo propósito e demonstram como Nomura não está seguro da sua história, obrigando os jogadores a reviverem momentos de jogos anteriores com receio de perder o seu contexto.

A exposição e o flashback não são os únicos problemas. Há 17 anos, a história era muito mais simples, mais arquetipal e, para alguns, certamente menos complexa e ambiciosa do que é agora – mas era compreensível. E não digo compreensível para os fãs, mas sim para qualquer jogador que decidisse pegar em Kingdom Hearts. A desculpa (válida) é que Kingdom Hearts III é efetivamente uma sequela que necessita de um conhecimento prévio para ser compreendido na sua totalidade, mas, quando a história insere clones, viagens do tempo, dimensões paralelas e realidades virtuais, sou levado a concluir apenas uma coisa: isto são tudo desculpas para buracos na narrativa. Não podemos confundir desordem e complexidade desnecessária com profundidade emocional e consistência. 17 anos é muito tempo.
Sinto-me, no entanto, num conflito permanente com o jogo. Ao contrário do que pode parecer, não estou a odiar o meu tempo com Kingdom Hearts III, antes pelo contrário. Estou a descobrir um jogo que é mecanicamente divertido, sólido e variado no que toca ao seu sistema de combate e aos mundos que apresenta aos jogadores. É visualmente marcante, muito próximo das propriedades da Disney e dos seus filmes originais, bastando olhar para Frozen ou Toy Story para compreender a dimensão da adaptação realizada pela Square-Enix. Apresenta-se, por isso, através de uma performance sólida o suficiente para não prejudicar a experiência dos jogadores. É um jogo divertido e digo-o com todas as certezas. É um RPG de ação que me dá prazer jogar, explorar e combater, seja em que mundo for, conseguindo até fazer-me apreciar os segmentos na Gummi Ship pela primeira vez, ao dar-me mais controlo sobre a navegação dos níveis, juntamente com tesouros e outros segredos para descobrir.

A própria estrutura dos mundos foi retrabalhada e nota-se como a série tem evoluído ao longo dos anos. Se na história existe um ruído impossível de afastar, já na jogabilidade conseguimos sentir o progresso e avanços tecnológicos de uma forma bastante palpável. Ainda que Kingdom Hearts III não seja um salto significativo de design, existe muito para descobrir nos seus mundos e cenários e há uma maior vontade em envolver os jogadores nos níveis e na sua exploração. Os mundos são mais extensos, mais verticais e existe uma progressão muito interessante na forma como avançamos pela campanha. Sentimo-nos a crescer à medida que exploramos e encontramos os colecionáveis espalhados pelos níveis – alguns deles muito difíceis de encontrar, o que nos dá um maior desafio –, onde podemos subir paredes rapidamente, uma das novas mecânicas do jogo, e tirar fotografias e utilizar habilidades para navegar os níveis sem quaisquer percalços. A jogabilidade está limada, mais apurada, ainda que o botão de salto continue a ser insatisfatório.
Apesar de nunca ter sido fã do sistema de combate, vejo-me pela primeira vez a desejar que um novo confronto comece o mais depressa possível. Na sua base, o sistema de combate é muito parecido ao que vimos em Kingdom Hearts II e Birth By Sleep, mas ainda mais rápido e dinâmico. Agora é possível desviar e lançar magias no ar, duas novidades que tornam os combates mais frenéticos, mantendo-nos sempre em movimento. Junta-se ainda a combinação de ataques especiais, os summons – que aqui são apelidados de Links –, golpes cooperativos e ainda os ataques das atrações da Disneyland – e sim, vocês leram bem. Em combate, Kingdom Hearts III é um espetáculo visual, cheio de partículas, luz e animações detalhadas, injectando nos confrontos uma magia que, muito sinceramente, só seria possível numa produção da Square-Enix. Encontrei combates em que invoquei meteoros com o Donald, ativei habilidades secundárias de Sora, entrei para dentro de um robot gigante e chamei o barco dos Piratas das Caraíbas, sem nunca parar. Por mais queixas que tenha em relação ao jogo, não posso dizer que não é divertido.

Há também uma vontade em dar mais controlo aos jogadores e senti isso na forma como o jogo quer que personalizemos Sora e as suas habilidades. Pela primeira vez, podemos equipar três Keyblades e alterná-las em combate, dando-nos um novo leque de ataques sempre que quisermos. Cada Keyblade tem um ataque especial, uma espécie de transformação que dá a Sora uma habilidade única, seja mais velocidade, duas pistolas ou combinações adicionais. Estes ataques podem ser ativados a qualquer momento, desde que encham o medidor até ao fim. Não são alterações comparáveis aos restantes jogos do género, mas é interessante ver como há todo este foco na personalização e na liberdade de escolha em combate. Há toda uma nova variedade de mecânicas que tornam Kigdom Hearts III num jogo mais empolgante e isso é seu por direito.
O jogo também se esforça por manter-se fresco através de novos minijogos espalhados pelos vários mundos, onde se incluem segmentos de ritmo, de puzzles, entre outros. A campanha de Kingdom Hearts III parece jorrar vida e variedade quando a história é colocada de parte, algo que se torna evidente quando podemos finalmente explorar os mundos sem a urgência da narrativa. Para além dos minijogos, o jogo dá-nos ainda um número substancial de colecionáveis, um Photo Mode e desafios adicionais, como combates, para completarmos. É um jogo recheado de conteúdos, apesar da sua duração média, que tenta ser o mais cativante possível durante as horas que passamos a explorar e a combater.

Mas quando paro para pensar sobre o jogo, apercebo-me de que esta diversão é fugaz. Algo mudou. Não vejo a série da mesma forma e não consigo ficar indiferente aos seus problemas. Não consigo, na verdade, ficar indiferente ao meu próprio crescimento. Se Kingdom Hearts III saísse há 17 anos, eu sentiria o mesmo? A história seria igualmente confusa ou iria antes adorar todos os seus momentos ao ponto de cansar amigos e colegas com as melhores sequências de história? Seria tudo assim tão diferente? Mas 2002 foi há mesmo muito tempo, acontecimento incontornável. Já não estou no 10º ano, já não me interesso por algumas das temáticas que a série desenvolve e muito menos tenho a paciência necessária para compreender e contornar todos os problemas que encontro ao longo da campanha. Talvez não haja tempo, não só paciência, para isso. Não sei. O que eu sei é que Kingdom Hearts III faz-me sorrir, mas um sorriso vazio, de quem sabe que perdeu algo para sempre e não o quer admitir.
Kingdom Hearts III é um bom jogo e parece ter sido essa a conclusão que os fãs aguardavam com tantas expectativas. Isto é um marco. Infelizmente, não consigo ver mais do que euforia momentânea e prevejo que este jogo siga o mesmo caminho inglório de Final Fantasy XV, levando os fãs, um ou dois anos depois do seu lançamento, a admitirem que não era o que esperavam. Mas agora é tempo de celebração e eu compreendo isso, como poderia não compreender. Não consigo, no entanto, ficar indiferente a este crescimento, a este vazio e à injeção de vida adulta que agora sinto. Perdi um amigo, uma memória. 2002 foi há muito tempo.
Jogo cedido pela Ecoplay.
O título fez-me ler este artigo com a esperança que pudesse ler algo que senti quando joguei o jogo, apesar de nunca ter jogado nada da série.
Em suma, achei que o jogo tem um bom sistema de combate (apesar de repetitivo com o tempo), os mundos estão muito bem recriados e os efeitos visuais e todas as cores/luzes estão excelentes. Porém, algo que me deixou bastante desconfortável (tal como escrevi na análise), foram os diálogos algo juvenis, algo acriançados. Senti-me esquisito ao estar a ouvir aquelas conversas que, lá está, talvez há 17 anos fizessem sentido para quem jogou. Mas e agora para “homens de barba rija?” Será que todas as pessoas que analisaram o jogo e que, na altura, jogaram os anteriores, será que não sentiram algo como “se calhar já estou um pouco velho para este tipo de personagens e conversas de miúdos cheios de ilusões?”
Não quero passar a mensagem que odiei o jogo porque não é o caso. A minha situação é mais complicada porque ao nunca ter jogado nenhum título da série, senti-me em pura queda livre em muitos momentos. Para mim, foram mesmo os diálogos que tiveram o maior peso na hora de não desfrutar do jogo. Por arrasto, muitas das cutscenes acabaram por se tornar aborrecidas. Como disseste e bem, o personagem principal não puxa carroça, é alguém que parece ter parado no tempo e não mostra ambição. Digamos que a minha experiência foi afetada pelo facto que não ligo a nada da Disney talvez desde o último Toy Story e antes disso nem sei. São mundos que me são indiferentes e que não têm mais o brilho que tinham quando era novo e quando via algumas coisas com os meus irmãos. Das propriedades presentes, só vi mesmo Toy Story e Piratas das Caraibas por isso, nesse aspeto, foi um massacre tudo o resto, apesar de nem tudo ter sido assim tão mau como estou a fazer parecer.
Bom, acima de tudo, ponho em causa se realmente as pessoas que jogaram os jogos na altura, tiveram o mesmo grau de satisfação tendo em conta a sua idade agora, ou se foi mais uma pura viagem de nostalgia com gráficos HD 🙂
Seja como for, bom artigo. 😉
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Cair neste jogo às cegas é algo que eu não desejo a ninguém e ainda que conseguiste retirar alguns elementos positivos da experiência! Para mim, esta série envelheceu mal e o terceiro capítulo revela problemas graves na base da narrativa desenvolvida durante 17 anos. É uma série que se transformou num produto “apenas para fãs”. Podemos adorar o combate e os mundos, mas no final do dia, é um jogo que nos confunde e que fala directamente para os fãs. E se esse diálogo é confuso e falsamente profundo, então eu desisto.
Estou contigo, não consigo dizer que é um mau jogo, mas também não o consigo defender a 100%. É um jogo que jogo para me divertir, mas quando a história aparece e me rouba todo o controlo, torna-se um pesadelo. Daí sentir-me mais confortável em falar na minha experiência com o jogo do que a analisá-lo!
Obrigado, Pedro!
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Será que podes corrigir o “esquesito” para esquisito. lol Escrever às quase 2 da manhã não é boa ideia ^^ Nem vou ler o resto ahah thanks
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