Everything: O problema de sermos Tudo

Quando analisamos um jogo, existem certos parâmetros que devemos ter em consideração. Gráficos, história, banda sonora e jogabilidade são todos elementos de um todo, peças que contribuem para o funcionamento geral de um determinado jogo, seja ele qual for. Mas quando surgem títulos como Everything, desenvolvido por David OReilly, o panorama é quase obrigado a mudar e passa a existir uma enorme necessidade de explicar ao leitor que os videojogos também são arte, objetos de expressão pessoal e artística, seja individual ou coletiva. E aqui a palavra-chave é “também”, pois um jogo nunca deixa de ser…um jogo.

Everything, lançado na semana passada na PS4 (em breve no PC), é um jogo que vos deixa ser literalmente tudo. Animais, seres inanimados, plantas, planetas e galáxias e átomos e partículas de pó e extraterrestres. Tudo, literalmente tudo o que possam imaginar e percecionar dentro do mundo do jogo. A ideia é viajar pelos elementos e compreender o que nos une e qual o nosso lugar no universo e no grande plano da vida. É ainda possível interagir com outros seres, ouvir os seus pensamentos e elaborar as nossas próprias deambulações filosóficas enquanto nos transformamos e alteramos e escolhemos a nossa própria evolução. E ocasionalmente temos direito a banda sonora.

E esta é a sua estrutura. Viajar pelos elementos, alternar entre seres e objetos e continuar à procura de um sentido e de um caminho até ao final. Apesar da mensagem ser confusa – ou pessoal, se quiserem continuar no campo da opinião -, existe um objetivo final que pode até ser comparável à demanda principal de No Man’s Sky, onde o fim não é tão importante como a viagem em si.

O problema é que existe uma dissonância entre as ideias conceptuais e a jogabilidade insípida. Se por um lado temos um conceito que envolve a possibilidade de controlarmos todos os elementos de um universo, existindo ainda a opção de alternarmos o número e tamanho dos objetos e seres vivos à nossa vontade, do outro temos uma jogabilidade que se limita e restringe às suas ações mais básicas. Esta simplicidade é agravada pelo próprio conceito em si, que evidencia o quanto os dois estão a milhas de distância. O conceito quer dar-vos a possibilidade de serem tudo, como e quando quiserem. Mas a jogabilidade coloca-vos num ciclo vicioso onde ficam restritos a uma combinação aborrecida entre o L2 e R2 para alternarem a vossa forma.

Everything dá-nos uma jogabilidade que não tem qualquer peso e que é incapaz de dar qualquer força às ideias interessantes que a história e o ambiente tentam aprofundar e transmitir aos jogadores. Não existe um verdadeiro envolvimento no que escolhemos ser ou no que podemos ser e no que ambicionamos ser. Podemos começar como um coelho ou uma partícula de pó, e evoluir para a estrela mais próxima ou a galáxia que engloba todos os estados que deixámos para trás. Mas ser uma galáxia não é diferente de ser um coelho, os movimentos e objetivos são os mesmos, e as ações são novamente limitadas – podem cantar, dançar e interagir com outros seres da vossa classe – sem qualquer profundidade.

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Podem apoderar-se de todos os seres e objetos do mundo, mas não vão encontrar quaiquer diferenças entre eles.

A beleza de Everything é apoiada por uma direção artística que caminha numa linha ténue entre o experimental e o banal. As cores tanto se assumem com uma vida e luminosidade reconfortantes como transbordam opacidade e esborratam cenários poligonais e simples e aborrecidos que tentam ser uma afirmação dos seus ideais. Os modelos são variados e existe uma tentativa surpreendente em criar um universo onde tudo é possível e onde encontramos uma vida e “variedade” realísticas. E para um jogo desta magnitude, a escolha foi acertada e temos um tom devidamente experimental que mascara a simplicidade dos gráficos. É uma linha ténue, mas Everything encontra um equilíbrio satisfatório e consegue ainda surpreender nos seus melhores momentos, especialmente quando nos apanha totalmente desprevenidos.

Mas em nenhum momento deixa de ser demasiado limitado como um jogo. É o seu conceito que o eleva ao estatuto que começa a ganhar junto da crítica especializada. Eu percebo, é difícil afastarmos a nossa opinião pessoal. Mas um crítico, um bom crítico, de C grande, não tem direito a pensar apenas em si. Um crítico analisa um objeto, seja ele qual for, tal como é. Não interessa se a cor vermelha simboliza a sua infância ou se o jogo retrata um tema que lhe é intrinsecamente pessoal. Para um crítico, o “eu” não existe (ou não deveria existir) e um jogo deve fazer sentido como um todo e como um objeto inserido num mundo e área próprios.

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De uma partícula até à maior galáxia do universo. Nunca o tudo soube tão a nada.

Não quero insinuar que estou a escrever as verdades que os outros simplesmente não viram ou não tiveram coragem de escrever. Mas é aqui que eu digo que não consigo afastar o meu olhar analítico e ver apenas as ideias, o lado experimental e filosófico e supostamente provocador. O que eu consigo ver, isso sim, é um título que se tenta esconder por detrás de uma ideia-base que não é mais do que isso.

É um conceito interessante, e é uma ideia que eu, pessoalmente, fico grato por existir. Mas não é mais do que isso. Consigo ver a sua beleza e compreender o seu objetivo, a sua direção de arte e o surrealismo em que se banha. É uma afirmação estilística que raramente vemos no mundo dos videojogos, um produto que é totalmente pessoal e que ambiciona quebrar todos os moldes. O problema é que não existe um envolvimento tão acentuado dos jogadores e vermos animais a rebolarem desenfreadamente pelos cenários só é cómico durante os primeiros minutos. Depois queremos mais. E não há.

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O humor, segundo Everything.

O grande problema de Everything é que não é “apenas” um objeto artístico. Não é um quadro cuja interação se resume ao nosso olhar e às nossas próprias sensibilidades. Everything é um jogo, é tátil e é jogável. É tanto um produto como uma peça de arte, e digo-o da forma mais fria possível. É essa a verdade. E por mais que me custe e por mais que me tenha divertido e perdido no seu conceito, as falhas são demasiado gritantes para me sentir satisfeito, e o seu objetivo vago para me satisfazer pessoalmente. É esta a vida de um crítico, nem que seja um ainda em fase inicial: dizer mal do que gostamos ou respeitamos. E é assim.

O código para análise (PS4) foi cedido pela Double Fine Productions.

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