Glitch Review | The Last Guardian

Depois de nove anos em produção, The Last Guardian, o último jogo produzido por Fumito Ueda ao comando da Team Ico, chega sob a sombra de enormes expectativas: não só a longa espera, com os sucessivos adiamentos e os rumores de cancelamento, o tornaram numa espécie de “baleia branca”, como o próprio legado de Ueda e da sua equipa exige algo extraordinário. A recepção por parte dos críticos, por sua vez, tem sido extrema, alternando entre a ovação e a desilusão.

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Esta bipolaridade é justificada e não é inédita. Ueda, enquanto designer e director de Ico e de Shadow of the Colosssus, apresentou experiências apoiadas em mecânicas invulgares com esquemas de controlos pouco ortodoxos. As histórias que contou, a par dos protagonistas que as viveram, afastavam-se das epopeias de heróis e das jornadas de vingança habituais – heroísmo, inclusive, é um conceito que ganha contornos bastante próprios em Ico e Shadow of the Colossus –, e todos estes aspectos se revelavam através da estrutura do jogo e, acima de tudo, da jogabilidade.

O que interessa a Ueda explorar nos seus jogos, e The Last Guardian não é excepção, é a comunicação entre o jogador/protagonista e o mundo. Se em Ico a interacção e a relação crescem a partir do toque, do gesto de segurar a mão, entre duas personagens que não partilham a mesma língua, em The Last Guardian a comunicação existe a partir da mímica e solidifica-se com a relação crescente entre duas personagens de raças e intelectos diferentes. Este é o ponto de partida para um jogo clássico de aventura e não de acção, apesar de algumas cenas intensas. O jogador controla um rapaz que se encontra num castelo do qual procura fugir e para isso tem de resolver puzzles com a ajuda de Trico, o animal enorme que é um cruzamento de um pássaro com um gato.

O facto de Trico não ser controlado pelo jogador, tendo em conta o seu papel fulcral na resolução de muitos puzzles, tem sido apontado como a grande fonte de frustração por parte de alguns críticos. Por outro lado, é no realismo impressionante do companheiro acidental do rapaz que jaz o engenho de The Last Guardian e uma boa parte do que faz deste jogo algo único na indústria. À semelhança de Agro, o cavalo de Shadow of the Colossus, Trico não é um veículo, mas uma criatura independente do protagonista, e essa identidade que Ueda lhe garante significa que não existe automatismo nos seus movimentos ou decisões. Desta feita, há hesitação no seu comportamento e, na minha experiência, os momentos frustrantes surgiram na maior parte das vezes por indecisão minha ou por não compreender qual era o caminho que devia tomar.

“Faço-me sempre a mesma pergunta:
o que é que só um videojogo pode fazer?
Os jogos que eu faço têm estas situações entre duas personagens – é essa a minha resposta a essa pergunta.”

Fumito Ueda

Não quero com isto dizer que as falhas apontadas a The Last Guardian são todas uma questão de opinião. O jogo não mantém uma fluidez de imagem (mais sensível no modo 4K da PS4 Pro), tem um esquema de controlos que exige adaptação, e algumas cenas (raras) deviam apresentar um maior cuidado gráfico. Há ainda as dificuldades que a câmara tem em lidar com os espaços mais fechados, em particular quando os tem de partilhar com Trico. Contudo, sem que sirva de desculpa, estes eram elementos presentes já em Ico e Shadow of the Colossus e não comprometem de todo a experiência ou a imersão. Compensam os puzzles engenhosos, por vezes de tão simples, o mundo fantástico que (uma vez mais) nos arrebata com a sensação de escala e dimensão, a animação incrível de Trico e do rapaz, e a história que cresce por meio da acção do jogador com Trico ao longo do labirinto criado por Ueda, que consegue sempre maravilhar e pesar nos momentos-chave.

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A IA está para os videojogos como o calcanhar para Aquiles. Muitos estúdios evitam o risco de apoiar um jogo num calcanhar tão manhoso, mas não a Team Ico. Quem não arrisca não petisca.

É difícil fazer jus a um jogo como The Last Guardian. Por todas as falhas que possamos apontar, objectiva ou subjectivamente, é impossível não reconhecer o mérito técnico que é dar vida a Trico e a proeza que é convencer-nos sem esforço de que ele existe e criar uma relação com o jogador de forma tão natural. Esta é uma experiência rara nesta indústria, e mais raro ainda é estar perante algo que não pode ser recriado noutro meio. Se é a interacção que distingue os videojogos do cinema e outros meios multimédia, é impossível não reconhecer a importância de Ueda. The Last Guardian, na mesma linha de Ico e de Shadow of the Colossus, não agradará a todos, nem todos conseguirão (ou quererão) ultrapassar as falhas e maravilhar-se com este mundo que demorou nove anos a materializar-se. Mas os que forem sensíveis ao que o jogo tenta com sucesso ser, descobrirão uma aventura ímpar.

Não me é possível explicar por palavras a sensação recorrente de completa maravilha que senti em diferentes momentos de The Last Guardian, fosse por alguma reacção de Trico, por um pormenor de animação, pelo design surpreendente de algumas secções, ou por causa dos cenários perfeitamente arrebatadores. É triste saber que a Team Ico terminou, embora parte dos veteranos tenham acompanhado Ueda para a sua produtora genDESIGN; mas ainda que se sinta um travo agridoce de último capítulo, não se pode pedir um ponto final mais marcante que The Last Guardian. Ueda disse que, se no fim da aventura, o jogador acreditasse que Trico era real, então a missão estaria cumprida. Mais do que cumprida, guardo a certeza de que o sucesso é maior do que um jogo: é o legado de um autor numa indústria em que autores escasseiam.

A escala utilizada é de 1 a 10
A escala utilizada é de 1 a 10
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